Já é senso comum que 2020 é o ano que mudará a visão que o mundo tem sobre si mesmo. Ainda que a pandemia do COVID-19 passe – o que é certo que acontecerá –, não há dúvida de que ela deixará marcas nas relações entre países, nas relações entre países com seus cidadãos e mesmo naquelas entre empresas e seus clientes.
Essa afirmação pode a princípio soar dramática porque é evidente que o mundo já passou por pandemias. Essa, no entanto, é a primeira mobilização em escala efetivamente global em um mundo totalmente integrado: no passado, uma doença como a Gripe Espanhola foi extremamente agressiva mas em um mundo menos conectado, e doenças como SARS e MERS, apesar de mais recentes, tiveram uma propagação mais restrita. Pode-se dizer, portanto, que é nesta era que os governos estão aprendendo a lidar com um assunto que toca a todos ao mesmo tempo.
No Brasil isso não é diferente. O País oficialmente registrou seu primeiro caso em fevereiro e, considerando a progressiva deterioração da situação, em março estabeleceu um isolamento coletivo por tempo indeterminado, excetuando dele apenas alguns serviços essenciais.
Demandas imediatas ao isolamento
É evidente que um isolamento coletivo travou a economia ao mesmo tempo e de uma só vez. Com queda rápida de receitas, empresas passaram a buscar a manutenção de caixa por meio de ações judiciais para postergação do pagamento de tributos federais, estaduais e municipais. Demissões, suspensões de contratos de emprego ou reduções de carga de trabalho passaram a ser temas de reuniões internas.
Por sua vez, o governo federal passou a enfrentar um verdadeiro catch 22: ao mesmo tempo em que deveria ajudar a manter a saúde financeira das empresas (e, com isso, preservar empregos e evitar falências), precisaria de caixa não incluído no orçamento para custear seus auxílios ao mercado.
Neste momento o governo seguiu pela rota da geração de liquidez, desonerando empresas e auxiliando-a de formas diversas. Juntamente com o Congresso Nacional, aprovou regras tributárias como as abaixo:
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Redução a zero da alíquota do imposto de importação de produtos relacionados ao combate do COVID-19
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Redução a zero da alíquota do IOF em empréstimos de qualquer natureza contratados entre 3 de abril de 2020 a 3 de julho de 2020
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Suspensão de prazos processuais na Receita Federal e nos tribunais administrativos
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Diferimento de pagamento de certos tributos federais (incluindo FGTS)
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Prorrogação de validade de certidões negativas de débitos
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Suspensão de atos de cobrança feitos pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional
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Aprovação de novas regras para incentivo à renegociação de dívidas tributárias do governo federal
Ainda que importantes, diversas empresas entendem que as medidas ainda não são suficientes. Com base nisso, têm pedido nos tribunais a postergação de pagamento de outros tributos não cobertos acima e o resgate de valores contingentes depositados em processos judiciais, por exemplo. É de se prever, portanto, um certo acúmulo de demandas nos tribunais.
Potenciais medidas federais futuras na visão do Congresso Nacional
Situações extremas como a da pandemia do COVID-19 naturalmente abrem as portas para diversos tipos de boas e ruins oportunidades. Se, por um lado, a pandemia positivamente adiantou alguns assuntos que provavelmente estariam maduros em alguns anos, por outro lado ela tende a retardar outras discussões.
A reforma tributária é uma dessas boas oportunidades que podem ser perdidas. Em um ano de eleições municipais, a aposta do governo federal para 2020 era avançar já no primeiro semestre com a discussão e aprovação do texto constitucional que estabelece um único Value Added Tax federal em substituição a tributos federais, estaduais e municipais. Seriam seis meses de negociações com governos estaduais e municipais, que se ressentiam de uma perda concreta de poder de tributação – e, com as novas regras, de maior dependência de repasses do governo federal.
Com o foco priorizado na saúde, é natural que questões complexas e controversas – e às vezes inconvenientes – como a reforma de um sistema tributário inteiro fiquem para segundo plano. Não sendo aprovada neste ano, o assunto seria retomado em 2021, ano em que não somente o País estará enfrentando a ressaca pós-COVID-19 como também o atual governo federal já estará em seu terceiro ano – e, de olho nas eleições presidenciais de 2022, possivelmente com menos força de negociação ou mesmo sem a intenção de se indispor sobre o assunto. Caso isso ocorra, uma reforma tributária passará para a agenda de um novo governo a partir de 2023.
Sendo este o caso, o que seria de se esperar para 2020 em termos de nova política fiscal após a crise do COVID-19?
Em se tratando de arrecadação de tributos no Brasil, a Constituição Federal estabelece que um imposto somente pode ser cobrado a partir do exercício financeiro seguinte ao da publicação da lei que o criou ou majorou – trata-se do princípio da anterioridade constitucional, que garante segurança e previsibilidade ao contribuinte. Em relação às contribuições sociais (de mesma imputabilidade que impostos, apesar de naturezas diversas), esta anterioridade é de apenas noventa dias.
Esse princípio é o maior entrave ao governo federal em uma situação como a atual. A exceção mais evidente a ele está no chamado empréstimo compulsório: o artigo 148, I da Constituição Federal o equivale a um tributo e permite que seja criado e cobrado de forma imediata em casos excepcionais para atender despesas extraordinárias geradas em casos como da pandemia de COVID-19.
Ainda que legal, o empréstimo compulsório é uma anormalidade no sistema tributário. Para o governo federal, trata-se de uma armadilha: apesar de ser rapidamente cobrável, ele deve ser devolvido no futuro, o que evidentemente o transforma em um financiamento que comprometerá futuros orçamentos. Para o contribuinte, há a evidente surpresa do comprometimento imediato de um orçamento atual – e, no passado, os casos de devolução foram a prazos longos e com remunerações incompatíveis com as inflações das épocas.
A situação atual já criou uma tendência a essa distorção no Congresso Nacional pela apresentação do projeto de Lei Complementar 34 que impõe às pessoas jurídicas brasileiras com patrimônio líquido igual ou superior a R$ 1 bilhão (aproximadamente US$ 200 milhões) uma cobrança de até 10% do lucro líquido apurado em 2019 – assumindo a validade do empréstimo compulsório já em 2020. O Ministério da Economia definiria o percentual aplicável a cada setor econômico, e o pagamento seria feito de trinta a noventa dias após a publicação da lei.
De acordo com a proposta apresentada, os valores pelo governo serão restituídos às empresas financiadoras em até quatro anos a partir do fim da situação de calamidade pública relacionada ao COVID-19. A restituição será feita conforme disponibilidade orçamentária em até doze parcelas mensais.
Além da natural restrição que este tema tem pela sociedade em geral, ele foi objeto de rejeição expressa em carta à Câmara dos Deputados assinada por confederações nacionais como a da Saúde, do Transporte e das Instituições Financeiras, por exemplo. Estas argumentam pela presença de confisco, pela falta de isonomia e pela inexistência de relação entre os valores cobrados e a riqueza que as empresas podem necessariamente possuir.
O ambiente político e econômico não parece favorecer uma aprovação do projeto, assim, como não parece favorecer a aprovação de outro projeto em discussão: a do imposto sobre grandes fortunas.
Assim como o empréstimo compulsório, o imposto sobre grandes fortunas nunca teve boa recepção na sociedade, mas sua potencial implementação também tem sido discutida por alguns parlamentares desde o último mês em função da atual situação de crise pandêmica.
Ao contrário do empréstimo compulsório, no entanto, este controverso imposto nunca foi efetivamente cobrado no Brasil, e por razões claras: não somente gera arrecadação irrelevante para o orçamento do governo, como também incide sobre ativos relevantes (e muitas vezes ilíquidos) que já se sujeitaram ao imposto de renda para acrescer ao patrimônio dos contribuintes – além de tender a gerar uma fuga de capitais. Entidades que representam auditores fiscais, no entanto, defendem a criação do tributo sob o argumento de que, ainda que irrelevante, a correspondente arrecadação teria função de “justiça social”.
Alguns poucos projetos para implementação do imposto foram apresentados no Congresso Nacional nos últimos anos, mas a crise do COVID-19 trouxe seis projetos novos à discussão. A proposta mais complexa e relevante – e mais avançada nas discussões – está descrita no projeto de Lei Complementar 183, de 2019, que determina o cálculo do importo por meio da aplicação de alíquotas progressivas de 0,5% a 1% sobre patrimônios líquidos superiores a R$ 22.8 milhões (aproximadamente US$ 5 milhões) detidos por pessoas físicas brasileiras ou espólios (em relação ao patrimônio que detenham no Brasil e no exterior) e por pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras, ou espólios no exterior (em relação ao patrimônio que detenham no Brasil).
O projeto permite a redução da base de cálculo por valores correspondentes a instrumentos do trabalho do contribuinte, direitos de propriedade intelectual ou industrial e bens de pequeno valor – e mesmo de tributos previamente pagos sobre imóveis e veículos que façam parte dos ativos sujeitos ao imposto sobre grandes fortunas.
Ao considerarmos o histórico de resistência do Congresso Nacional, seria de se argumentar que este seria mais um imposto a não avançar nas correspondentes discussões. Considerando as atuais demandas de caixa e a abordagem politicamente correta do tributo em uma situação de COVID-19, no entanto, não seria enorme surpresa se o projeto andar para início de arrecadação em 2021. Este é um assunto a ser acompanhado.
Em se tratando de política fiscal com planejamento menos apressado e mais alinhado a padrões mundiais, o governo federal poderia buscar reforço de caixa em uma legislação focando na tributação de dividendos – assunto, que, afinal, tem estado na mesa há anos e ganhou mais força nas últimas eleições presidenciais, quando todos os candidatos trouxeram o tema para seus discursos.
Argumentos favoráveis a isso vão desde uma visão de justiça social até um pretenso alinhamento dos investimentos no Brasil ao perfil de países-membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), os quais em maioria tributam dividendos e, ao mesmo tempo, têm uma tributação corporativa mais reduzida – em média, 23.7%.
Uma tributação nesse sentido corresponderia a uma quebra de paradigma: o governo brasileiro tem mantido dividendos isentos de tributação pelo imposto de renda por mais de vinte e cinco anos sob o argumento de atração de investimentos, ao passo em que mantém a tributação corporativa mais onerosa. Parece bastante natural, portanto, que uma potencial revogação da atual isenção deveria ser acompanhada de uma redução da carga do imposto de renda corporativo, atualmente vigente à alíquota de 34%.
O Brasil tem quase trinta projetos de lei tratando da tributação de dividendos nos registros do Congresso Nacional. A grande maioria destes projetos é bastante simples, apenas retirando a atual isenção para impor alíquotas diversas (desde 15% em tributação exclusiva na fonte até 27.5% como uma renda ordinária), sem qualquer referência à tributação corporativa e sem qualquer previsão para o tratamento de créditos ou discussão sobre potencial dupla tributação – excepcionalmente, o Projeto de Lei 1952, de 2019, propôs a redução da tributação corporativa para 29%, mas ainda assim insuficiente para neutralizar a proposta tributação de dividendos.
No começo de abril, início da curva ascendente da pandemia no Brasil, o Senado propôs às pressas a votação de um novo projeto (Projeto de Lei 766), o qual pretendia autorizar o governo federal a unilateralmente revogar a isenção de dividendos pagos a pessoas físicas, atribuindo à Receita Federal o poder de instituir alíquota progressiva para esta renda ordinária a partir de 2020.
O Projeto de Lei era ineditamente absurdo ao autorizar o governo a revogar uma regra criada pelo Congresso Nacional: sendo o caso de revogação, o próprio Congresso Nacional deveria fazer isso, e não delegar sua própria atribuição. O Projeto de Lei era ao mesmo tempo duplamente inconstitucional: por um lado, por ferir o princípio de que um tributo somente pode ser cobrado a partir do ano seguinte àquele em que foi criado ou majorado e, por outro, por agredir o princípio da isonomia ao focar a tributação apenas em pessoas físicas – a lei não pode ser fonte de privilégios e/ou prejuízos aos contribuintes, e sim instrumento para tratamento igual a eles.
O Projeto de Lei foi arquivado e no momento não há qualquer outra discussão sobre esse assunto específico, mas isso não significa que o assunto não volte à pauta em algum momento. Por ora, permanece claro (juntamente com a discussão relativa à tributação de grandes fortunas e mesmo relativa a um empréstimo compulsório) que o grande risco in a COVID-19 era está no fato de que a pressa pela obtenção de caixa tende a gerar a criação de regras apressadas e oportunistas.
Potenciais medidas futuras na visão de auditores fiscais
No fim de março, entidades ligadas aos auditores federais e estaduais divulgaram documento conjunto com suas visões sobre medidas que – em suas visões – deveriam ser tomadas para auxílio na pandemia no Brasil. Conforme alegaram, “foram identificados contribuintes e setores com capacidade contributiva, seja em razão do patrimônio acumulado, seja porque, a despeito da crise, suas atividades e receitas tendem a ser mantidas ou até mesmo incrementadas, cabendo-lhes maior contribuição em prol do conjunto da sociedade”.
Algumas das sugestões passam por medidas atualmente discutidas no Congresso Nacional, como a criação de imposto sobre grandes fortunas e a criação de empréstimo compulsório (para 2020, sobre a mesma base do imposto sobre grandes fortunas e sobre dividendos distribuídos). Algumas outras sugestões, no entanto, inovam com as seguintes medidas:
- Isenção total para micro e pequenas empresas optantes pelo sistema simplificado de tributação (SIMPLES)
- Redução ou eliminação da fees para o chamado Sistema S de treinamento profissional.
- Desoneração da folha salarial.
- Utilização da taxa de câmbio de 31 de dezembro de 2019 para o cálculo dos tributos incidentes sobre importação.
- Imposto temporário (contribuição social) de 20% sobre todas as receitas financeiras.
- Tributação adicional de 15% sobre os lucros (CSLL) e de 4% sobre as receitas (COFINS) – ambas de instituições financeiras.
- Imposto temporário de 10% sobre os contratos de câmbio de exportação fechados acima de R$ 4.45 (aproximadamente US$ 0,90).
- Aumento para 30% na tributação de estate and donation tax (Imposto Sobre Transmissão Causa Mortis e Doação – ITCMD)
Os auditores fiscais estimam que estas medidas gerariam de R$ 234 a 267 bilhões (aproximadamente, de US$ 47 a 53.5 milhões) entre arrecadações e desonerações, mas ressaltam que a elas também deveriam ser somadas suas demandas já existentes como, por exemplo, o fim da isenção de imposto de renda sobre dividendos, a atualização da tabela de alíquotas do imposto de renda de imposto de renda de individuals e a revogação da tax immunity à exportação de bens primários e semielaborados.
Ações de Estados e Municípios
De forma mais relevante, Estados brasileiros são arrecadadores de tributos sobre o valor agregado (ICMS) na circulação de mercadorias (e determinados serviços) e tributo sobre a propriedade de veículos (IPVA), assim com os municípios arrecadam imposto sobre serviços (ISS) e tributos sobre a propriedade de imóveis (IPTU/ITR). Nem Estados nem municípios estão autorizados pela Constituição Federal a instituir empréstimos compulsórios em decorrência de pandemias.
Por estarem autorizados a cobrar um número relativamente restrito de tributos, a atuação dos 26 Estados (e o Distrito Federal) e dos 5.5 mil municípios na resolução da crise gerada pelo COVID-19 tende a ser igualmente restrita – e, na prática, tem sido desigual. Entre os Estados, até o momento oito publicaram isenções menores em termos de produtos ligados à pandemia – o Rio de Janeiro, por exemplo, apenas concedeu isenção de ICMS para as operações com álcool gel.
É de se esperar que, no decorrer da crise, sejam consideradas desonerações importantes, como, por exemplo, isenção de IPTU para atividades comerciais, industriais e de serviços que estejam fechadas durante o lockdown. ICMS e ISS terão seus recolhimentos naturalmente reduzidos em função de uma menor atividade comercial e de serviços, mas seria possível também discutir uma ampla desoneração de alíquotas com o objetivo de manter de uma saúde mínima na atividade econômica com o foco na futura retomada das atividades.
O futuro
Consideradas as diferentes realidades entre Estados e municípios, não é de se esperar que venham a tomar medidas conjuntas e/ou relevantes nas desonerações tributárias. Pode-se especular, no entanto, que aqueles mais ricos e afetados venham a tomar a dianteira nesse sentido, como são o caso de São Paulo e/ou do Rio de Janeiro.
É do governo federal, por outro lado, são esperadas as maiores medidas. Se, por um lado, aquelas já tomadas foram um importante auxílio nesse primeiro mês de declaração oficial da pandemia, por outro foram consideradas lentas pelas empresas.
Além de dever proativamente antecipar novas necessidades nos próximos momentos, o governo federal agora precisará – sob o olhar vigilante da sociedade – andar por um caminho delicado que passa pelo auxílio à população e à economia como um todo, pela tentação pelo aumento de tributos e pelo dever de desviar de discursos que priorizam oportunidades de momento em detrimento de um compromisso futuro e sustentável para o País.
*Este artigo foi originalmente publicado no Lex Latin. Clique aqui para acessá-lo.