O Seguro de Responsabilidade Civil como auxílio no gerenciamento de riscos em ensaios clínicos
O produto, que já é uma ferramenta consolidada em outros países, demanda bases contratuais rígidas e deve se popularizar no Brasil
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Mesmo antes do início da pandemia, a indústria farmacêutica já vinha empenhando um grande esforço na pesquisa e desenvolvimento de drogas e vacinas contra a Covid-19. Para tanto, faz-se necessária a realização de ensaio clínicos, que são estudos baseados em diretrizes científicas que objetivam a descoberta ou confirmação de efeitos, indicações terapêuticas e/ou a identificação de reações adversas ao produto investigado, de forma a determinar sua eficácia e segurança em voluntários humanos. Como qualquer atividade econômica, a realização de ensaios clínicos compreende vários riscos mensuráveis, incluindo danos a terceiros que poderão decorrer da atuação dos responsáveis pela condução desses ensaios. Nesse contexto é que reside a relevância do seguro de responsabilidade civil para ensaios clínicos, ramo securitário ainda pouco conhecido no Brasil.
Sob a ótica regulatória, ensaios clínicos em seres humanos demandam a avaliação de aspectos éticos, que devem observar essencialmente fatores como:
- respeito à dignidade humana e autonomia do sujeito de pesquisa;
- riscos e benefícios da pesquisa (individuais e/ou coletivos);
- evitar danos previsíveis;
- relevância social.
No Brasil, esta análise é de responsabilidade da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), entidade ligada ao Conselho Nacional de Saúde (CNS), bem como de Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs) estabelecidos em hospitais, centros de pesquisa e outras instituições semelhantes. Além disso, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) também pode regular o tema em alguma medida, especialmente caso o ensaio clínico tenha como objetivo o registro de um produto no Brasil para sua posterior comercialização, aprovados pela Agência antes do início dos testes.
Por essência, a experimentação em seres humanos é uma operação complexa. É por esse motivo que se faz necessário o estabelecimento de bases contratuais rígidas e claras que implementem as obrigações, responsabilidades e direitos de cada ente envolvido assim como os riscos inerentes da atividade de pesquisa clínica para cada um dos seus atores, essencialmente o sujeito de pesquisa, o patrocinador, o investigador e o centro de pesquisa.
Nesse cenário, o seguro de responsabilidade civil para ensaios clínicos poderá auxiliar a indústria farmacêutica a gerenciar riscos específicos relacionados a tais fatores.
No Brasil, ao menos duas coberturas deste seguro podem vir a se ajustar aos riscos da atividade de pesquisa clínica:
- a reparação de danos fixada por acordo com anuência da seguradora ou em sentença judicial ou arbitral transitada em julgado;
- as despesas emergenciais que visem mitigar danos a terceiros – por exemplo, atendimento hospitalar de terceiros prejudicados.
Nesse universo, há seguros com coberturas para perdas experimentadas pelos responsáveis pela promoção, coordenação e realização do estudo clínico (ou seja, os segurados da apólice) no que se refere a:
- danos corporais causados a terceiros por atos ou omissões não-dolosos do segurado em teste clínico iniciado durante a vigência da apólice (que não será inferior a um ano)
- custos de defesa incorridos pelo segurado no âmbito de reclamações pelos referidos danos.
O clausulado do seguro demanda que o segurado da apólice notifique fato potencialmente danoso durante a vigência da cobertura, porém permite que as reclamações sejam apresentadas durante o prazo complementar e/ou suplementar da cobertura.
Outras coberturas podem ser contratadas em complemento ao seguro de responsabilidade civil geral do responsável pelos testes, cobrindo os danos corporais e/ou materiais (e outros danos e prejuízos consequentes) experimentados por participantes de testes clínicos, seus acompanhantes e quaisquer indivíduos presentes nos locais de execução dos testes, desde que o dano seja efeito de pesquisa clínica ou de acidente involuntário.
Há, ainda, seguros com coberturas para a empresa desenvolvedora exclusivamente contra danos corporais causados por experimentos clínicos com medicamentos a participantes humanos, incluindo custos periciais e honorários advocatícios incorridos na defesa do segurado, desde que o dano seja constatado ou diagnosticado dentro de três anos do fim do teste clínico.
O seguro de responsabilidade civil para testes clínicos é um produto consolidado em países como Estados Unidos, Alemanha e Suíça, em razão, inclusive, da obrigatoriedade de sua contratação em algumas jurisdições. Em vista disso, um maior leque de opções de cobertura é disponibilizado às empresas responsáveis pela condução da operação, geralmente através de seguradoras de alcance global, amparadas por equipes de subscrição de risco multidisciplinares, compostas por profissionais versados em engenharia, biomedicina e outras competências correlatas.
Essas seguradoras, em geral, oferecem proteção a empresas farmacêuticas tradicionais e a players não-empresariais (como centros médicos/hospitalares e instituições de pesquisa), sob coberturas multimilionárias. Além disso, a proteção securitária, não raramente, tem alcance global e é acompanhada por serviços agregados, a exemplo da disponibilização aos segurados de equipe multidisciplinar, encarregada do contínuo acompanhamento do risco.
No Brasil, por outro lado, o seguro de responsabilidade civil para testes clínicos está em estágio anterior de maturidade, mas é natural que se popularize com os crescentes desafios enfrentados pela indústria farmacêutica e, notadamente, a intensa busca de medicamentos e vacinas para enfrentamento da Covid-19.
É esperado que esse desenvolvimento, por um lado, reduza preços de contratação do seguro e, por outro, incentive o aprimoramento da estrutura de gestão de riscos farmacêuticos, trazendo maior segurança para desenvolvedores de soluções farmacêuticas e biomédicas, bem como investidores participantes desse mercado.
*Colaboraram André Filipe Guimarães Fortunato e Marina Battistella