Novas regras de preço de transferência: uma maratona de adaptações e ajustes
Os contribuintes que ainda não começaram o processo de aplicação destas políticas já estão atrasados
A Lei nº 14.596/2023 introduziu uma transformação profunda nas políticas de preço de transferência no Brasil, alinhando-a às práticas da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Sua antecessora, a Lei nº 9.430/1996, com seu foco na praticabilidade da precificação e um escopo de aplicação mais restrito, foi relegada ao passado. De agora em diante, o preço de transferência não será mais determinado por margens fixas e será limitado a juros e operações de importação e exportação de bens e serviços entre partes relacionadas.
Com a implementação das novas regras de preço de transferência, qualquer transação comercial ou financeira transfronteiriça acordada entre duas partes consideradas relacionadas nos termos do artigo 4º da Lei nº 14.596/2023 deve ser precificada como se fosse entre partes não relacionadas (princípio arm´s length).
Essa mudança estrutural apresenta uma série de desafios para as multinacionais. Elas terão que redesenhar suas operações, revisar preços, repensar políticas internas, estabelecer novos contratos e produzir documentação mais detalhada e contemporânea às operações, muito mais exigente do que o requerido pela Lei nº 9.430/1996. Trata-se de uma verdadeira maratona de adaptações e ajustes.
Os contribuintes que ainda não iniciaram o processo de aplicação das novas regras de preço de transferência já estão atrasados. Embora as empresas tenham até o final de 2025 para documentar as novas regras, elas precisam iniciar este processo o quanto antes. Veja um passo –a passo simplificado:.
- 1) Identificação das transações controladas: o primeiro passo é identificar quais transações estão sujeitas às novas regras. Qualquer transação comercial ou financeira transfronteiriça entre partes relacionadas estará sujeita a controle. Para maiores detalhes sobre o que seriam partes relacionadas no âmbito das novas regras de preço de transferência, clique aqui;
- 2) Delineamento da transação: após identificar as transações controladas, é necessário analisar as principais características econômicas dessas operações, considerando contratos formais e a prática real. Este passo envolve entrevistas funcionais para entender melhor as funções, riscos e ativos em cada transação, redesenho de operações, produção de novos contratos e adoção de novas políticas internas;
- 3) Análise de comparabilidade: com as transações delineadas, os termos e condições das transações controladas são comparados com aqueles de transações entre partes independentes;
- 4) Aplicação dos métodos: com os dados comparáveis, o contribuinte deve escolher e aplicar o melhor método para a transação controlada. A remuneração adequada é estabelecida e os ajustes necessários são realizados;
- 5) Documentação: em conformidade com as diretrizes da OCDE, as novas regras exigem três documentos principais: o Arquivo Global (informações sobre o grupo como um todo), o Arquivo Local (transações realizadas pelo contribuinte local) e a Declaração País-a-País (CbC), que contém informações sobre a estrutura societária, o controlador final do grupo, a alocação global de tributos e lucros, e indicadores de atividade econômica (como a localização de ativos).
Embora o prazo final para a entrega da documentação seja o último dia útil de 2025, os passos um a quatro já deveriam estar sendo implementados.
As novas regras de preço de transferência não são mais novidade – elas estão em vigor desde janeiro de 2024. Os contribuintes que ainda não operam em conformidade com as novas regras para precificar as suas transações transfronteiriças com empresas do mesmo grupo tem até o dia 31 de dezembro para fazer o ajuste espontâneo decorrente da não adequação ao princípio do arm´s length para evitar a aplicação de penalidades.
A demora no processo de documentação tem outras consequências, tais como:
- Exposição a eventos inesperados: a empresa se torna vulnerável a eventos imprevistos que podem afetar negativamente o processo de documentação, por obstruir a elucidação de termos comerciais que não estão expressos em contratos ou outras formalidades. Isto inclui, por exemplo, a perda de profissionais que tem conhecimento dos ativos, funções e riscos das transações controladas;
- Atribuição de funções, ativos e riscos pela Receita Federal no Brasil (RFB): a exposição a esses eventos inesperados pode fazer com que o contribuinte falhe em fornecer corretamente o delineamento da transação. Caso isto ocorra, as autoridades poderão, de acordo com artigo 65 da IN RFB nº 2161/2023, adotar estimativas premissas razoáveis para realizar a sua análise, podendo, inclusive, atribuir à entidade brasileira as funções, os riscos e os ativos que foram designados a outra parte da transação controlada, mas que não apresentam evidências confiáveis de terem sido efetivamente desempenhados, assumidos ou utilizados por ela. Estas alterações podem vir a resultar na alocação de mais lucro à entidade brasileira, inflando a base de cálculo do Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL);
- Penalidades: se o contribuinte falhar em fornecer as informações necessárias para o correto delineamento da transação controlada, ele também estará sujeito a uma das multas previstas no artigo 35 da Lei nº 14.596/2023, especialmente a de 3% sobre o valor de sua receita bruta do período a que se refere a obrigação para aqueles que não atenderem aos requisitos para a apresentação do Arquivo Global e/ou Arquivo Local. Esta multa tem um limite mínimo de R$ 20 mil e limite máximo de cinco milhões.
E não é apenas isso. Ao preparar sua documentação, os contribuintes precisam estar cientes que ela não deve estar alinhada apenas às novas regras de preço de transferência. A documentação brasileira precisa estar em sintonia e alinhada com a documentação das demais jurisdições. É vital garantir que as estruturas e políticas das novas regras de preço de transferência sejam consistentes entre as diferentes jurisdições.
Isso desencadeia um turbilhão de interações e revisões constantes de informações e estudos de preço de transferência conduzidos pelo Grupo em anos anteriores. Muitas vezes, pelo fato de o Brasil ainda não estar alinhado no passado à diretrizes da OCDE, a devida atenção não foi dada às funções, ativos e riscos desempenhados no país. Isso pode gerar um efeito cascata de consequências em outras jurisdições.
A maratona começou. E aí, vai ficar para trás ou vai encarar o desafio de frente?
Para mais informações sobre as novas regras de preços de transferência, acompanhe a série especial da prática de Tributário do Mattos Filho sobre o tema.