Negociação de débitos para empresas em processo de recuperação judicial
Uma análise sobre as modalidades de parcelamento e transação de débitos inscritos em dívida ativa para empresas em recuperação judicial
Assuntos
A Lei n.º 14.112/2020 e a Portaria PGFN n.º 2.382/2021 trazem importantes ajustes aos instrumentos existentes para negociação de débitos com o Fisco para as empresas em situação de recuperação judicial.
Tamanha a importância dos instrumentos de negociação para esses contribuintes que, de acordo com levantamento realizado pelo Insper, divulgado em fevereiro de 2021, um terço das transações já celebradas, no âmbito federal, dizem respeito a empresas em situação de recuperação judicial.
Regularização de dívidas federais com a Lei nº 14.112/2020
Diante das longas discussões judicias em curso sobre a possibilidade ou não que débitos de natureza tributária pudessem ser incluídos no plano de recuperação judicial das empresas, da necessidade ou não de que o contribuinte portasse certidão de regularidade fiscal para que tivesse seu plano aprovado e ainda da necessidade de um programa de parcelamento beneficiado para os contribuintes em recuperação judicial, sobreveio a Lei nº 14.112, em dezembro de 2020.
A Lei nº 14.112/2020, que alterou a legislação aplicável ao processo de recuperação judicial e extrajudicial, alterou também a Lei nº 10.522/2002, que trata das modalidades de parcelamento federal disponíveis aos contribuintes em geral.
Referida legislação trouxe três novos instrumentos para regularização de dívidas federais:
- Art. 10-A: parcelamento de dívidas com a Fazenda Nacional constituídos ou não, inscritos em dívida ativa ou não em até 120 parcelas, sendo permitida ainda a liquidação de até 30% da dívida consolidada, em relação aos débitos não inscritos em dívida ativa, com prejuízo fiscal e base de cálculo negativa da CSLL;
- Art. 10-B: parcelamento de dívidas com a Fazenda Nacional constituídos ou não, inscritos em dívida ativa ou não, relativos a tributos sujeitos a retenção na fonte em até 24 parcelas mensais e sucessivas;
- Art. 10-C: transação individual que pode ser apresentada pelo contribuinte relativa a créditos inscritos em dívida ativa.
Instrumentos para negociação de débitos inscritos em dívida ativa (PGFN)
Para regulamentar a referida alteração legislativa, a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional editou a Portaria PGFN n.º 2.382/2021, que em seu art. 4º prevê quatro instrumentos disponíveis para a negociação de débitos inscritos em dívida ativa da União para contribuintes em processo de recuperação judicial:
- Parcelamento dos débitos de que tratam os artigos 10-A e 10-B da Lei n.º 10.522/2002;
- Transação dos débitos de que trata o artigo 10-C da Lei n.º 10.522/2002;
- Transação do contencioso tributário de pequeno valor;
- Celebração de Negócio Jurídico Processual.
Os dois primeiros instrumentos acima são exclusivamente oferecidos a contribuintes em processo de recuperação judicial, tendo a Lei nº 14.112/2020 e a Portaria PGFN n.º 2.382/2021 trazido importantes aspectos para essas modalidades, que já estão sendo implementadas pelas autoridade fiscais.
Parcelamentos previsto nos artigos 10-A e 10-B da Lei 10.522/2002
Com a alteração legislativa, passou a ser permitida, em relação aos débitos em geral, a possibilidade de parcelamento dos débitos fiscais em até 120 prestações mensais e sucessivas, aplicando os seguintes percentuais mínimos, sobre o valor da dívida consolidada:
- Da primeira à décima segunda prestação: 0,5% cada parcela;
- Da décima terceira à vigésima quarta prestação: 0,6% cada parcela;
- Da vigésima quinta prestação em diante: percentual correspondente ao saldo remanescente, em até 96 (noventa e seis) prestações mensais e sucessivas.
Nessa modalidade de parcelamento, o contribuinte poderá liquidar até 30% dos débitos consolidados com prejuízo fiscal e base de cálculo negativa de CSLL ou outros créditos próprios relativos a tributos administrados pela Secretaria Especial da RFB. Optando por essa alternativa, o montante remanescente dos débitos deverá ser parcelado em até 84 vezes.
Nova opção de parcelamento de débitos fiscais
Uma importante inovação trazida pela Lei n.º 14.112/2020 foi a possibilidade de parcelar também os débitos fiscais referentes aos tributos passíveis de retenção na fonte, de desconto de terceiros ou de sub-rogação, e do IOF, retido e não recolhido ao Tesouro Nacional. Para essa hipótese, porém, o número máximo de parcelas será de 24 prestações mensais e sucessivas, observando-se os seguintes percentuais mínimos sobre o valor da dívida consolidada:
- Da primeira à sexta prestação: 3% cada parcela;
- Da sétima à décima segunda prestação: 6% cada parcela;
- Da décima terceira prestação em diante: percentual correspondente ao saldo remanescente, em até 12 (doze) prestações mensais e sucessivas.
Contribuinte deve incluir totalidade dos débitos
Nas duas alternativas de parcelamento, não há impeditivo de que o contribuinte opte por liquidar seus débitos com a Fazenda Nacional em outros parcelamentos federais já instituídos. Porém, como regra, o contribuinte deverá incluir no parcelamento a totalidade de seus débitos, salvo aqueles já parcelados ou objeto de discussão judicial, devidamente garantidos (com garantia não incluída no plano de recuperação judicial) ou com decisão reconhecendo exigibilidade suspensa.
Caso opte pela inclusão de débitos objetos de discussão administrativa e judicial, como de praxe, o contribuinte deverá comprovar a desistência expressa do processo e do direito sob o qual se funda a ação. Porém, é válido reforçar que a adesão ao parcelamento não implica em liberação imediata dos bens e direitos do contribuinte que eram utilizados em garantia dos respectivos débitos (art. 10, § 6º da Lei n.º 10.522/2002).
Outras regras sobre débitos, alienação e inadimplência
Além disso, nos casos de alienação de parte dos ativos não circulante do contribuinte, parte do montante recebido deverá ser destinado obrigatoriamente à amortização dos débitos incluídos em parcelamento (art. 20 da Portaria PGFN n.º 2.382/2020). O percentual a ser utilizado poderá chegar a 30% e será fixado com base na razão entre o valor total do passivo fiscal e o valor total de dívidas gerais do contribuinte, na data do pedido de recuperação judicial.
Para os débitos previdenciários, o número de prestações se manteve o mesmo, sendo de até 60 meses (art. 11 da Portaria PGFN n.º 2.382/2020). Também foi elevado o número de parcelas que, se inadimplidas, levam à rescisão do parcelamento, que agora passa a ser de seis parcelas consecutivas ou nove alternadas.
Outra sensível alteração trazida pela Lei n.º 14.112/2020 e que tem sido alvo de inúmeras críticas é a de que, incorrendo o contribuinte nas hipóteses de rescisão do parcelamento, a Fazenda Nacional poderá requerer a convolação do processo de recuperação judicial em falência (art. 10-B, § 4º-A, IV, da Lei n.º 10.522/2002).
Transação na cobrança de débitos inscritos em dívida ativa da União e do FGTS – art. 10-C da Lei 10.522/2002
Embora já fosse disponível para os contribuintes em geral pela Lei nº 13.988/2020 e pela Portaria PGFN n.º 9.917/2020, o instituto da transação para empresas em processo de recuperação judicial recebeu importantes ajustes com o advento da Lei nº 14.112/2020 e da Portaria PGFN n.º 2.382/2021.
Dentre as alterações realizadas, se destacam a elevação do tempo máximo para pagamento do débito, que passou a ser de até 120 meses (art. 21, II, “c”, da Portaria PGFN n.º 2.382/2020), bem como o limite de redução do débito que poderá chegar a 70% (art. 21, I). Tais ajustes se mostram bastante relevantes, principalmente ao se comparar com os limites anteriores de 84 meses e 50% de redução do débito (art. 14, III e IV, da Portaria PGFN n.º 9.917/2020).
Assim como para os parcelamentos, também foi elevado o número de prestações que, se inadimplidas, conduzem à rescisão da transação, que passa a ser de seis parcelas consecutivas e nove para parcelas alternadas (art. 26, I, da Portaria PGFN n.º 2.382/2020), impedindo que dificuldades pontuais ou extraordinárias possam impedir a continuidade dos acordos celebrados.
Suspensão de execuções judiciais ativas e outros benefícios
Outra grande alteração foi a suspensão automática de execuções judiciais ativas em desfavor dos contribuintes em recuperação judicial com a adesão à transação (art. 21, § 5º, da Portaria PGFN n.º 2.382/2020), o que antes dependia de análise casuística e aprovação da PGFN. Outros benefícios disponíveis para as empresas em recuperação judicial através do instrumento da transação são:
- Diferimento da primeira parcela em até 180 dias ou moratória;
- Flexibilização das regras para aceitação, avaliação, substituição e liberação de garantias;
- Flexibilização das regras para constrição ou alienação de bens;
- Utilização de precatórios para amortização ou liquidação de saldo devedor transacionado.
Mudanças na avaliação de contribuintes
Não obstante os importantes ajustes praticados, vale reforçar que, anteriormente, os débitos devidos por empresas em recuperação judicial eram classificados, automaticamente, como “irrecuperáveis” para fins de definir o percentual de desconto na transação.
Porém, a partir da Portaria PGFN n.º 2.382/2021, para definição dos percentuais de redução do débito e prazo aplicáveis, o contribuinte precisará ser avaliado individualmente, a partir de diversos critérios, tais como: impacto na capacidade de geração de resultados decorrente da crise econômico financeira que ensejou o pedido de recuperação judicial (art. 21, § 1º, IX, da Portaria PGFN n.º 2.382/2020).
Além disso, tal como para os parcelamentos, a Fazenda Nacional poderá requerer a convolação da recuperação judicial em falência no caso de rescisão da transação.
Por fim, ainda que a Portaria PGFN n.º 2.382/2021 diga respeito apenas aos débitos federais, é importante mencionar que a Lei n.º 10.522/2002, com as alterações promovidas pela Lei n.º 14.112/2020, passou a autorizar que os Estados, Distrito Federal e Municípios, por lei de iniciativa própria, adotem instrumentos de transação para seus créditos, a partir dos termos aqui trazidos.
Aplicação concreta do instituto: o que temos até agora
À luz das premissas acima, é interessante também analisar as transações firmadas com contribuintes em Recuperação Judicial, para entender como elas têm se desenvolvido na prática. A partir dos termos disponibilizados pela própria PGFN, destacamos os casos, que trazem em suas cláusulas interessantes elementos comentados a seguir.
1º caso – garantia sob a forma de gravame sobre marcas comerciais
No primeiro caso, um grupo econômico firmou junto à PGFN termo de transação individual para pagamento de seus débitos inscritos em Dívida Ativa da União e do FGTS, bem como para os débitos ainda não definitivamente constituídos, ainda em fase administrativa. O ponto de maior atenção deste caso se refere à garantia ofertada pelo contribuinte. Lembramos que a exigência de garantias pelo contribuinte em Recuperação Judicial, é, nos termos das Portarias PGFN nº 2382/2021 e 9917/2020, medida passível de ser exigida pelo Fisco, “a seu exclusivo critério”, nas palavras dos artigos 7º, III das Portarias supramencionadas.
Assim, embora a apresentação de garantias não seja uma condição sine qua non para a realização da transação dos contribuintes em Recuperação Judicial, caso tal medida seja reputada pertinente pela Fazenda Nacional, não há espaço negociação por parte do contribuinte. No caso, a garantia se materializou sob a forma de gravame sobre as marcas comerciais do Grupo, a ser registrado perante o Instituto Nacional de Propriedade Intelectual.
A possibilidade de oneração das marcas do grupo pôde ser materializada por força de disposições específicas de seu Plano de Recuperação Judicial, o que possibilitou sua transplantação para o ambiente negocial da transação tributária. Tal elemento é bastante interessante pois aponta para um aspecto positivo das negociações em transação tributária, que é o fato de o Fisco estar levando em consideração, de maneira efetiva, as particularidades do Plano de Recuperação Judicial do contribuinte e chegar em patamares mais sofisticados de negociação.
Nesse eito, a oferta de garantias intangíveis, tais como marcas registradas perante o INPI, traduz uma inovação à postura mais restritiva da Fazenda Nacional quanto aos bens elegíveis para garantia dos débitos tributários. Comumente, o Fisco tende a se opor a aceitar como garantia bens imateriais e/ou que não possam ser instantaneamente convertidos em dinheiro, ditos “menos líquidos”.
O STF, no julgamento da ADI 3.934-2/DF, entendeu pela constitucionalidade do artigo 60 da Lei nº 11.101/2005, o qual faculta ao contribuinte recuperando a possibilidade de alienar unidades produtivas isoladas de seu negócio, conceito esse que a doutrina nacional identifica como sinônimo de “estabelecimento industrial”, que abrange os elementos tangíveis e intangíveis do negócio, considerados em uma visão holística. O artigo 60-A do mencionado diploma legal menciona expressamente que bens, direitos e ativos intangíveis também estão englobados pelo conceito de “unidade produtiva isolada”.
Nota-se que a aceitação das marcas como garantia do plano de transação individual no âmbito da Recuperação Judicial denota uma maior abertura do Fisco quanto às possibilidades específicas da lei de recuperação judicial, e não somente às disposições da legislação tributária stricto sensu, como forma de proporcionar a superação da crise financeira pelo contribuinte submetido à Recuperação Judicial.
2º caso – oferta de precatórios como meio de amortização do passivo
O segundo caso traz como elemento interessante a ampla utilização, pelo contribuinte, de precatórios para amortização do saldo devedor.
No caso concreto, todos os precatórios utilizados pelo contribuinte são de sua própria titularidade, possibilidade exequível por meio de assunção de instrumentos particulares de cessão de precatórios, nos quais a Fazenda Nacional figura como cessionária, a serem registrados perante o Cartório de Registro de Títulos e Documentos. Feito isso, os precatórios já deverão ser minutados pelo Poder Judiciário com o apontamento da União Federal como beneficiária do ofício requisitório de levantamento. O termo de acordo deixou consignado qual(is) precatório(s) seriam utilizados para saldar/amortizar cada débito figurante do plano de transação individual, de modo que a imputação desses valores não se dará de maneira arbitrária pelo Fisco.
Embora neste caso os precatórios utilizados sejam de titularidade do próprio contribuinte, a norma expressamente autoriza a utilização de precatórios de terceiros para tal finalidade, conforme artigos 57 e seguintes da Portaria PGFN nº 9917/2020. Assim, a utilização de precatórios de terceiros pelos contribuintes no âmbito da transação pode significar uma interessante via de adquirir direitos creditórios contra o Fisco sob condições mais atrativas, com deságio em ambiente de livre mercado, e, assim, reduzir o efetivo desembolso financeiro necessário ao pagamento dos débitos tributários.
Para mais informações sobre o tema, acompanhe a série especial Soluções alternativas de conflitos com o Fisco.