O cenário do novo coronavírus trouxe à tona discussões jurídicas das mais complexas, incluindo o conflito entre duas ou mais garantias constitucionais e/ou direitos sociais, como por exemplo, a proteção às criações industriais e o direito à saúde. Em termos práticos, recentemente, foram apresentados três projetos de lei que têm como objetivo permitir a licença compulsória de patentes, também chamada de “quebra de patentes” pela imprensa, em razão da Covid-19.
O Projeto
de Lei nº 1.184/2020 dispõe sobre a concessão das licenças não-voluntárias previstas na Lei
nº 9.279, de 14 de maio de 1996. De acordo com o artigo 2º do PL, durante o estado de emergência em saúde de que trata a Lei
nº 13.979, de 06 de fevereiro de 2020, poderá ser concedida, de ofício, licença compulsória, temporária e não exclusiva, para a exploração de patente, sem prejuízo dos direitos do respectivo titular, nos termos da Lei nº 9.279/96 e regulamentos do Ministério da Saúde. Vale notar que esse projeto não propõe uma alteração direta ao texto da Lei em questão.
Já os Projetos de Lei
nº 1.320/20 e Projeto
de Lei nº 1.462/20, sendo o segundo uma atualização da redação do primeiro, alteram diretamente o artigo 71 da Lei nº 9.279/96 para tratar da possibilidade de licença compulsória automática expressamente nos casos de emergência nacional decorrentes de declaração de emergência de saúde pública pela OMS ou por autoridade nacional competente. Nesse cenário, caberia ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), publicar a relação de patentes e pedidos de patente.
O PL nº 1.320/20 também prevê que a remuneração do titular da patente é fixada em 1,5% do preço da venda ao Poder Público que deve ser pelo fornecedor do produto produzido sob licença. Por fim, o titular da patente deveria repassar ao Poder Público todas as informações para reproduzir o produto patenteado, devendo o Poder Público assegurar a proteção cabível dessas informações.
Os três projetos aguardam Despacho do Presidente da Câmara dos Deputados.
O instituto da licença compulsória
A atual Lei de Propriedade Industrial (i.e., Lei
nº 9.279/96) inclui alguns casos de tratamento extraordinário às patentes, tal como aquelas de interesse da defesa nacional (artigo 75 e parágrafos) e os relacionados as situações de licença compulsória (artigo 68 a 74). A licença compulsória, em nosso ordenamento, consiste na possibilidade de licenciar compulsoriamente os direitos de uma patente, em cinco hipóteses: o exercício abusivo dos direitos patentários; o abuso de poder econômico do titular da patente; a falta de uso ou exploração comercial insuficiente; a licença cruzada (por dependência); e por interesse público.
Em seu artigo 71, a Lei nº 9.279/96 prevê a possibilidade de concessão de licença compulsória nos casos de emergência nacional ou interesse público declarados, desde que o titular da patente ou seu licenciado não atenda a essa necessidade, poderá ser concedida, de ofício, licença compulsória, temporária e não exclusiva, para a exploração da patente, sem prejuízo dos direitos do respectivo titular. Vale notar que, conforme indicado anteriormente, é este o artigo que pretende ser alterado pelos PL nº 1.320/20 e PL nº 1.462/20, que embora mantenham a previsão de licença compulsória já existente em situações emergenciais como vivemos, antecipam alguns procedimentos, como a fixação prévia do valor de remuneração do titular da patente, alegadamente, em prol da agilidade.
A licença compulsória nas hipóteses de emergência nacional e de interesse público foi regulamentada pelo Decreto
nº 3.201, de 06 de outubro de 1999, de modo que poderá ser concedida, de ofício, nessas situações, sendo que no caso de interesse público somente para uso público não-comercial, desde que assim declarados pelo Poder Público, quando constatado que o titular da patente, diretamente ou por intermédio de licenciado, não atende a essas necessidades.
Apesar de pouco utilizada de forma direta, a possibilidade de licenciamento compulsório com base em emergência nacional e interesse público é um tema que ganha bastante atenção, principalmente em tempos de crise ou pandemia, tal qual o Brasil e o mundo se encontram neste momento.
O instituto da emergência de saúde pública sob a perspectiva do direito sanitário
Em 30 de janeiro, a OMS declarou que o surto de Covid-19 constitui uma emergência de saúde pública de importância internacional (Emergência Internacional). Como indicado anteriormente, os projetos de lei e suas eventuais alterações no campo de propriedade intelectual surgiram na esteira desta declaração.
A definição de Emergência Internacional encontra-se no Regulamento Sanitário Internacional, instrumento jurídico de Direito Internacional elaborado no âmbito da OMS e adotado no nosso ordenamento por meio do Decreto Legislativo nº 395, de 09 de julho de 2009. Nesse sentido, qualifica-se como Emergência Internacional um evento extraordinário que constitui um risco para a saúde pública para outros Estados, devido à propagação internacional de doença e potencialmente exigindo uma resposta internacional coordenada.
Nota-se, assim, que conceito de Emergência Internacional possui certo grau de indeterminação, não se limitando a doenças específicas ou a características a elas associadas, mas, sim, às noções de risco internacional e à necessidade de cooperação. Ainda, nos termos do referido Regulamento, compete ao Diretor-Geral da OMS fazer tal declaração, uma vez ouvido órgão temporário chamado Comitê de Emergências e sem necessidade de consulta prévia aos Estados membros (art. 48).
Em paralelo, a definição de emergência de saúde pública de importância nacional (Emergência Nacional) surge a partir do Decreto nº 7.616, de 17 de novembro de 2011. Nos termos do Decreto, a declaração de Emergência Nacional deve ocorrer em “situações que demandem o emprego urgente de medidas de prevenção, controle e contenção de riscos, danos e agravos à saúde pública” (art. 2º), sendo importante mencionar que não há conexão necessária com eventual declaração de Emergência Internacional pela OMS.
Na atual pandemia de Covid-19, além da declaração de Emergência Internacional realizada em janeiro, o Governo Federal declarou Emergência Nacional por meio da Portaria nº 188, de 03 de fevereiro de 2020, do Ministério da Saúde.
Considerações finais
Antes da implementação dos Projetos de Lei, eventuais medidas jurídicas extraordinárias precisam ser devidamente analisadas pelo legislador, tendo como base a aplicação do princípio da proporcionalidade. No presente caso, é necessário agir com cautela para não fragilizar o sistema de patentes brasileiro por meio da banalização do instituto da licença compulsória com a inclusão de hipótese genérica de sua aplicação direta, utilizando o estado de emergência em saúde como prerrogativa para expandir a acessibilidade a medicamentos protegidos por patentes de forma indiscriminada.
Até porque, um dos requisitos listados é a declaração de Emergência Internacional, e a competência para esta declaração emana diretamente do Diretor-Geral da OMS, sem qualquer necessidade de consulta, revisão ou aprovação por autoridade nacional. Além disso, ressalta-se que há declarações atualmente vigentes de Emergência Internacional que não envolvem diretamente o Brasil.
Assim, antes de decidir pela possibilidade ou não de licenciamento compulsório vinculado à Covid-19, o legislador deve, no mínimo:
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garantir que as mudanças não violem os acordos internacionais assinados pelo Brasil (em especial, o TRIPS);
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verificar a existência de respaldo científico suficiente para comprovar que o uso de dado medicamento é eficaz no combate à doença;
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analisar se o titular da patente é capaz de produzir o medicamento na escala necessária, bem como de vende-lo ao governo por um preço adequado, salvo situação fática específica exija medida mais rápida, conforme Decreto 3.201/99;
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analisar e definir as possibilidades de aplicação da licença compulsória já vigentes em nosso ordenamento jurídico, de modo a não vinculá-las sem limitações a conceitos amplos como Emergência Nacional e Emergência Internacional
*Colaborou Marina Battistella