A contribuição social sobre o lucro, a coisa julgada e os últimos 30 anos
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No início deste ano, completei 33 anos desde que comecei a estagiar no Direito. À época, início de 1989, acompanhávamos as profundas discussões no âmbito da Assembleia Constituinte, responsável por entregar ao país uma nova Constituição, pós-regime militar, a qual acabou por ser promulgada em 5 de outubro de 1988.
Entre suas centenas de artigos, ela contém uma seção denominada “Das limitações do poder de tributar”. Em uma carta constitucional considerada garantista, dado o contexto em que nasceu, não é de se surpreender: nada mais natural do que atribuir competência aos entes políticos para tributar, mas, ao mesmo tempo, impor-lhes limites que se traduzem em garantias ao contribuinte.
Contudo, foi a partir daí que nasceu um dos maiores contenciosos do mundo (senão o maior), envolvendo o fisco e o contribuinte. E, pasmem, alguns daqueles processos que tiveram início no final da década de 80 e início dos anos 90 ainda não foram concluídos. Há vários exemplos, mas trago uma discussão muito significativa para mim, pois foi uma das primeiras “teses” com que me deparei ao ingressar no direito tributário.
Especificamente em relação à União, a Constituição de 1988 atribuiu-lhe competência para a criação de contribuição social destinada à seguridade social sobre o lucro líquido (CSLL). Na sequência, foi publicada a Lei 7.689, em 15 de dezembro de 1988, justamente para instituir o tributo. Esse movimento gerou uma corrida dos contribuintes aos tribunais, seja porque a exigência já alcançava o lucro líquido gerado no próprio ano de 1988, seja porque, à época, entendia-se como necessária a utilização de lei complementar, mesmo para a criação de tributos cuja materialidade estivesse expressamente consignada no texto constitucional (algo superado, posteriormente, pela jurisprudência do STF).
Pois bem. O tema chegou a todas as instâncias do Judiciário em um prazo relativamente curto. E alguns dos contribuintes obtiveram decisões favoráveis, definitivas, que lhes reconheceram o direito de não recolher a contribuição social sobre o lucro líquido. Algumas dessas decisões transitaram em julgado em 1991 e 1992, ou seja, há cerca de 30 anos, o que permitiu que os respectivos contribuintes deixassem de recolher o tributo em questão por todo esse período.
Quase que em paralelo a algumas dessas decisões em processos individuais, o STF deparou-se com a discussão e, também em 1992, especificamente no julgamento dos Recursos Extraordinários nº 138.284-8 e 146.733-8 (processo individuais), manifestou o entendimento de que a exigência da CSLL somente seria inconstitucional em relação ao ano-base de 1988, por ofensa às irretroatividade e anterioridade. A partir do exercício de 1989, segundo o STF, a CSLL seria passível de exigência dos contribuintes.
Evidentemente, as empresas que possuíam decisões definitivas em sentido oposto não deveriam ser alcançadas por esse entendimento, salvo se a União lançasse mão de ação rescisória e lograsse êxito em desconstituir as respectivas coisas julgadas, o que não ocorreu em inúmeros casos. Ainda assim, esses contribuintes não se viram livres da exigência do tributo, tendo sido autuados inúmeras vezes sob diversos argumentos – seja porque, segundo a União, a inconstitucionalidade reconhecida só valeria para o ano de ajuizamento da ação, seja porque a Lei 7.689/88 teria sido alterada por normas posteriores não colhidas pela coisa julgada –, todos, felizmente, superados.
Até que, finalmente, no exercício do controle concentrado de constitucionalidade, o STF, em 1996, julgou improcedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 15, que tinha por objeto a exigência da CSLL, razão suficiente para que a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, anos depois, se visse autorizada a manifestar o entendimento (Parecer PGFN/CRJ/492/2011) de que, a partir de então, o tributo seria exigível inclusive dos contribuintes com decisões definitivas favoráveis. Alegava que o entendimento manifestado em controle concentrado (na ADI nº 15) se sobreporia à decisão em controle difuso (nos casos individuais).
E essa pretensão da Fazenda Nacional acabou por se materializar em inúmeros processos administrativos e judiciais, até redundar no reconhecimento da repercussão geral da questão constitucional suscitada: “Limites da coisa julgada em matéria tributária, notadamente diante de julgamento, em controle concentrado pelo Supremo Tribunal Federal, que declara a constitucionalidade de tributo anteriormente considerado inconstitucional, na via do controle incidental, por decisão transitada em julgado.” (tema 881, relator ministro Edson Fachin).
Contribuição social sobre o lucro nos dias de hoje
Muitos anos se passaram desde as primeiras decisões definitivas favoráveis aos contribuintes. Até que tivemos a recente inclusão em pauta do caso (tema 881) no último dia 15 de dezembro de 2021 – coincidentemente, 33 anos após a publicação da Lei 7.689/88 –, oportunidade em que, infelizmente, o processo sequer foi apregoado, pois, como comumente acontece, as sessões plenárias do STF não são suficientes para a análise de todos os temas a ele submetidos.
Imaginávamos que o precedente seria incluído em alguma das primeiras pautas da sessão plenária do STF no ano de 2022. Soubemos, contudo, que o processo foi relacionado somente na pauta do dia 11 de maio de 2022, sem que tenhamos qualquer previsibilidade de que, realmente, será julgado nessa data. E lá se irão mais seis meses de espera, no mínimo…
Diante de tudo isso, remanesce a reflexão: é razoável imaginarmos que um contribuinte, que ingressou judicialmente em 1989 e obteve uma decisão definitiva afastando a exigência de um tributo em 1992, seja obrigado a aguardar mais de 30 anos para ter certeza de que aquela sua decisão transitada em julgado prevalece? Sim, porque na hipótese – ainda que remota, mas possível – de o STF vir a sobrepor o exercício do controle concentrado de constitucionalidade ao difuso, esse mesmo contribuinte verá remanescer exigência que há muito inexistia.
O exemplo dado acima é extremo, mas, infelizmente, não é incomum. Como dito anteriormente, há muitas discussões semelhantes que ainda não foram concluídas, envolvendo valores significativos, direitos constitucionais, interesse público e contribuintes de boa-fé.
Recordo-me das primeiras lições de direito processual civil, que me fizeram compreender a “coisa julgada” como a qualidade conferida à sentença judicial contra a qual não cabem mais recursos, tornando-a imutável e indiscutível. Sua origem é o direito romano (res judicata), cuja principal justificativa era de ordem prática: atribuir essa qualidade à decisão proferida era a única forma de pôr fim ao processo e consagrar a paz social.
Voltando ao caso concreto, soma-se à coisa julgada em favor do contribuinte os 30 anos passados desde então e o único resultado possível, a atender minimamente a segurança jurídica, é a manutenção dos seus efeitos e a salvaguarda das relações inerentes a ela.
Trago esse tema que muito me marcou e, como dito, ainda aguarda uma conclusão. Tenho certeza que serve para ilustrar os desafios que o sistema tributário brasileiro impõe, as vicissitudes dos operadores do direto e a realidade dos contribuintes brasileiros, para quem, como foi dito um dia, neste país até mesmo o passado é incerto.