

O futuro do uso de inteligência artificial pelo Judiciário
Resolução do CNJ define regras para o desenvolvimento, implantação e uso de IA nos tribunais brasileiros
O uso de inteligência artificial (IA) pelo Judiciário brasileiro cresce de forma acelerada, transformando rotinas, decisões e a própria dinâmica dos tribunais. Nesse contexto de inovação e desafios, a Resolução nº 615/2025 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) surge em um momento crucial, estabelecendo um marco regulatório abrangente para o desenvolvimento, implantação e uso de IA em todos os tribunais do país.
Aprovada em março de 2025, a Resolução substitui a 332/2020 e incorpora as lições de cinco anos de experiência com IA no Poder Judiciário. O novo texto amplia exigências de governança, classifica aplicações por grau de risco, reforça a supervisão humana obrigatória e descreve mecanismos concretos para garantir transparência, proteção de dados e segurança da informação. Esses pilares moldam não só o presente, mas também o futuro da atuação jurídica — de magistrados a advogados, de servidores a legaltechs.
É fato corrente que o Judiciário já utiliza IA para diversas finalidades, desde automação de tarefas administrativas até apoio à análise de grandes volumes de dados processuais. Para lidar com os riscos e potencialidades do avanço na sua utilização, a norma define diretrizes para o uso de soluções de IA pelo Poder Judiciário, tendo como princípios a centralidade da pessoa humana e o respeito aos direitos fundamentais.
As soluções passam a ser avaliadas como de alto risco ou de baixo risco, conforme o potencial impacto sobre direitos fundamentais, considerando a complexidade dos algoritmos e uso de dados sensíveis. Um sistema que prevê sentenças ou sugestão de penas, por adentrar em questões de liberdades fundamentais e garantias de julgamento isonômico e imparcial entra na faixa de alto risco, por exemplo, e está sujeito a auditorias regulares, avaliação de impacto algorítmico contínua e revisão anual da classificação pelo Comitê Nacional de IA do Poder Judiciário, órgão multissetorial criado para auxiliar o CNJ na implementação, no cumprimento e na supervisão das diretrizes que regem o desenvolvimento, a governança, a auditoria, o monitoramento e o uso responsável de soluções de inteligência artificial no âmbito do Poder Judiciário brasileiro. Já a automação de tarefas processuais rotineiras, por outro lado, é considerada de baixo risco, e têm um rito de acompanhamento proporcionalmente mais simples, ainda que permanente.
Um segundo eixo decisivo é a supervisão humana obrigatória. A Resolução veda, de forma expressa, qualquer solução que elimine a possibilidade de revisão judicial ou crie dependência absoluta na IA. Magistrados continuam integralmente responsáveis pelo conteúdo e consequências de seus atos — e a omissão na conferência crítica de peças elaboradas por IA pode ensejar responsabilidade funcional. Além disso, os produtos gerados por IA devem ser identificáveis nos logs de uso do sistema por meio de rótulos de identificação adequados e compreensíveis, para fins de estatística, monitoramento e eventual auditoria.
A governança desenhada pelo CNJ se apoia na Plataforma Sinapses, repositório nacional que centraliza o cadastro, a classificação, os relatórios de auditoria e as avaliações de impacto de todos os modelos de IA em uso no Judiciário. Cada tribunal mantém sua autonomia para desenvolver ou contratar soluções, mas a inscrição no Sinapses torna-se requisito obrigatório — inclusive para ferramentas de mercado que magistrados contratem individualmente. O CNJ, por intermédio do Comitê Nacional de IA, poderá reclassificar riscos, exigir auditorias adicionais, publicar relatórios anuais de conformidade e até determinar a suspensão de sistemas que violem as diretrizes.
No campo da proteção de dados e segurança da informação, a Resolução adota os princípios de privacy by design e privacy by default, impõe anonimização prévia para qualquer dado sigiloso submetido a LLMs externos, ou seja, modelos de linguagem de larga escala que não foram desenvolvidos nem hospedados pelo Poder Judiciário, mas sim por entes privados ou públicos disponíveis na rede mundial de computadores e acessados via assinatura, API ou interface web comum e, exige cláusulas contratuais específicas quando os tribunais recorrerem a provedores de nuvem ou APIs de IA generativa. Empresas que prestam serviços tecnológicos ao Poder Judiciário ou operam plataformas com impacto na jurisdição brasileira devem cumprir a legislação e decisões judiciais do Brasil. Os contratos devem prever cláusulas que exijam esse cumprimento, incluindo rescisão e penalidades em caso de descumprimento.
Para o setor jurídico, destacam-se quatro impactos:
- aceleração da produtividade — a automação de tarefas ordinatórias (classificação, sumarização, transcrição, agrupamento de processos) promete reduzir drasticamente os prazos internos, liberando os magistrados e servidores para atividades de maior complexidade.
- requalificação profissional — advogados, membros do MP e defensores precisarão dominar ferramentas de IA para peticionar de forma mais eficiente e analisar tendências jurisprudenciais em tempo real. Magistrados, por sua vez, devem desenvolver competências de auditoria, checagem de vieses e leitura crítica de relatórios algorítmicos.
- oportunidades para legaltechs — startups que ofereçam soluções compatíveis com os requisitos de auditoria, transparência e proteção de dados encontrarão um mercado regulado, porém fértil. O prazo de adequação até 2026 cria uma janela para ajustes de compliance e diferenciação competitiva.
- uniformização jurisprudencial — a detecção automática de precedentes qualificados e padrões decisórios, aliada à transparência dos modelos cadastrados, tende a diminuir discrepâncias entre tribunais.
A Resolução 615 fixa ainda um período de transição de 12 meses para que os tribunais se adequem às novas regras. Até 2027, a meta é que a totalidade dos tribunais esteja integrada ao Sinapses, capaz de processar em tempo real centenas de milhões de processos. Assim, a Resolução do CNJ chega em um momento estratégico, consolidando a inteligência artificial como infraestrutura essencial da Justiça brasileira, alavancando a eficiência sem abdicar do controle humano, da ética e da tutela dos direitos fundamentais.
Para mais informações sobre o assunto, conheça o attix, o programa de inovação aberta do Mattos Filho.
*Com autoria de Mariane de Castro Cortez, Consultora de Inovação do attix.