

Pilar 2 da OCDE: em que isto mudará para você?
Com atualizações recentes, o Brasil está se adequando às regras de tributação internacional, e empresas devem ficar atentas para se manter atualizadas
Assuntos
O cenário fiscal internacional tem passado por profundas transformações nos últimos anos em decorrência dos desafios decorrentes da digitalização da economia, pela erosão das bases tributárias e pela concorrência fiscal prejudicial entre os países.
Neste contexto, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) tem se debruçado sobre tais discussões, liderando processos de negociação multilateral para reformar as regras de tributação internacional objetivando garantir uma distribuição mais justa e equitativa dos direitos tributários sobre os lucros das grandes empresas multinacionais (MNEs, na sigla em inglês).
A primeira grande iniciativa da OCDE para endereçar essas discussões surgiu com o projeto BEPS (Base Erosion and Profit Shifting), em 2013. Com foco inicial na economia digital, a OCDE concluiu com o passar do tempo que a mobilidade de renda entre diferentes jurisdições não se limitava àquele setor, sendo necessário expandir a abordagem para abarcar espectro maior de multinacionais. Afinal, apesar dos avanços alcançados pelo projeto BEPS, ainda persistem lacunas e inconsistências nas regras tributárias internacionais, que permitem que as MNEs explorem as diferenças entre os sistemas tributários nacionais para reduzir artificialmente a sua carga tributária global.
Um dos principais resultados deste processo foi o acordo alcançado em julho de 2021 por mais de 130 países, que endossaram uma solução baseada em dois pilares: o Pilar 1, que visa alocar uma parcela dos lucros das MNEs aos mercados onde elas operam, independentemente de terem presença física nestes países; e o Pilar 2 objetivando estabelecer uma tributação mínima global sobre a renda das MNEs, de forma a evitar a transferência artificial de lucros para jurisdições de baixa ou nenhuma tributação.
O presente texto tem como foco o Pilar 2, que representa uma mudança paradigmática na tributação internacional ao introduzir um mecanismo de coordenação entre os países para garantir que as MNEs paguem um nível mínimo de imposto sobre a renda de forma global.
Tal sistemática surge como mecanismo para reduzir a concorrência fiscal internacional, que estimula os países a oferecerem regimes tributários preferenciais ou incentivos fiscais para atrair investimentos e atividades das MNEs, em detrimento da arrecadação e da capacidade fiscal dos demais países, bem como garantir que as MNEs contribuam de forma justa para o financiamento dos serviços públicos e do desenvolvimento sustentável dos países onde operam. Aproximadamente 36 países já possuem regras refletindo o Pilar 2, existindo a expectativa de que outros 20 as implementarão a partir de 2025. Neste contexto, a Receita Federal do Brasil (RFB) tem desenvolvido estudos específicos sobre a implementação do Pilar 2 no sistema brasileiro, o que tem sido objeto de debates na comunidade jurídica local.
O Brasil entrou no jogo
Em 4 de outubro de 2024, o governo brasileiro publicou a variante nacional do Pilar 2, em uma versão assumidamente copiada das orientações da OCDE – e não poderia ser diferente, já que as regras são um padrão mundial e o País está nele se inserindo. A versão brasileira veio por meio da Medida Provisória nº 1.262 e, ao mesmo tempo, pela Instrução Normativa nº 2.228.
As regras são inovadoramente sofisticadas, mas o conceito é simples: a riqueza produzida em determinada jurisdição deve ser tributada naquela mesma jurisdição por uma alíquota efetiva mínima de 15%.
Refletindo a regra mundial, a regra brasileira segue a imposição de que a empresa brasileira verifique a tributação efetiva à qual se submete, considerando:
- (a) os tributos sobre a renda (ajustados por diferenças temporais) registrados em suas demonstrações financeiras (equivalentes à despesa tributária corrente);
- (b) seu lucro líquido ajustado por itens listados pela legislação, como a despesa tributária líquida, dividendos excluídos e ganhos/perdas em participação no capital excluídos – o chamado lucro Globe (Global Anti-Base Erosion Rules – GloBE).
A alíquota considerada efetiva do que se paga no País será o percentual correspondente à divisão de (a) por (b).
Aqui é importante observar que os tributos considerados em (a) são os recolhidos pela empresa brasileira sobre suas apurações via lucro real ou presumido. A verificação sobre a taxa efetiva ocorre, no entanto, pela aplicação do valor de tais tributos sobre o lucro Globe.
A diferença positiva entre a alíquota padrão de 15% e entre esta alíquota efetiva será aquela aplicada ao chamado Lucro Excessivo, composto por pelo Lucro Globe reduzido de ajustes de substância correspondentes a investimentos feitos pela empresa em ativos tangíveis e em despesas de folha de pagamento – a intenção da legislação (e mesmo da OCDE) é incentivar os investimentos em atividades consideradas “ativas”.
O resultado desta operação será o tributo a ser pago no Brasil como complemento à tributação sobre a renda efetivamente recolhida no período. Trata-se do chamado Tributo Complementar Mínimo Doméstico Qualificado – em inglês, Qualified Domestic Minimum Top-Up Tax (QDMTT) –, que será cobrado como um adicional à Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL).
Claro que este é um roteiro simples, que não considera fatos como o de que um grupo multinacional pode ter diversas empresas no Brasil, e que tais empresas tendem a possuir lucros e prejuízos (e alíquotas efetivas iguais ou maiores de 15%). O conceito, no entanto, não se modifica. O roteiro se aplica, no entanto, tanto a empresas controladas no Brasil quanto a empresas controladoras aqui – neste caso, com o adicional à CSLL calculado apenas sobre seu lucro.
O fato é que, ainda que conceitualmente a criação de um adicional à CSLL não soe simpático a qualquer contribuinte, o argumento da Receita Federal do Brasil (RFB) para sua criação é imbatível: as regras do Pilar 2 estabelecem que, se o top-up tax não for criado no Brasil, ele será cobrado no país da empresa controladora por meio da Income Inclusion Rule (IIR). E, se as regras de Pilar 2 não tiverem sido criadas naquele país, outra empresa do grupo pode capturá-lo por meio do Undertaxed Profits Rule (UTPR).
No fim das contas, se por um lado a falta de criação de um adicional da CSLL corresponderia a uma perda de oportunidade de arrecadação no Brasil, sob a ótica do grupo multinacional ele será indiferente porque este aumento de tributação local será anulado pela falta de recolhimento no exterior no mesmo valor. Em audiência pública sobre o assunto no dia 5 de novembro, a RFB apontou que a criação destas medidas representará aumento de receita tributária de cerca de R$ 3,44 bilhões em 2026, R$ 7,28 bilhões em 2027, e R$ 7,69 bilhões em 2028.
O que isto tem a ver com você?
Os únicos contribuintes brasileiros vinculados ao assunto são aqueles que efetivamente pertençam a um grupo multinacional que tenha auferido receitas anuais iguais ou superiores a 750MM de euros nas demonstrações financeiras consolidadas da entidade investidora final em pelo menos dois dos quatro anos fiscais imediatamente anteriores ao analisado – este é o critério de inclusão ou exclusão de determinada empresa brasileira na regra.
O contribuinte que não se encaixar neste padrão não terá nada a calcular em relação a este assunto. Ainda que venha a se encaixar nestes limites, este contribuinte não precisará se preocupar com as regras brasileiras do Pilar 2 se calcular uma alíquota efetiva igual ou superior a 15%. Se se tratar de um conjunto de empresas no Brasil, esta afirmação vale se todos calcularem tal alíquota efetiva.
Os contribuintes que estiverem sujeitos às regras brasileiras do Pilar 2, por outro lado, deverão atentar para alguns pontos que direta ou indiretamente afetarão os custos e ganhos em diversos âmbitos de sua operação.
Custos de adequação
O custo tributário de qualquer empresa nunca é apenas aquele observado na linha de despesa do tributo, mas também aquele oculto nos investimentos feitos para tal cálculo – e isto inclui a criação e manutenção de sistemas de controles e cálculos, bem como o preenchimento de formulários e reportes. E o custo de uma empresa internacionalizada tende a ser ainda maior em função da conformidade requerida por outras controladoras, controladas ou coligadas.
Ao longo dos anos, o Brasil passou (e tem passado) por uma transformação legal que tem gerado um inegável aumento deste custo oculto. Em 2015, a RFB buscou criar a Declaração de Informações de Operações Relevantes (DIOR) em cumprimento a orientações de um dos planos de ação do Base Erosion and Profit Shifting (BEPS).
Esta tentativa não teve sucesso, mas em 2016 a RFB conseguiu criar a declaração País a País (DPP) – e, mais recentemente, novas obrigações vieram com a nova legislação de preços de transferência, como o Arquivo Local e o Arquivo Global (este com a personalização de ajustes locais). E, a partir de 2026, teremos uma reformulação de todo o sistema de cálculos e controles para inclusão de dois novos tributos (CBS e IBS) com regimes inteiramente próprios.
O conjunto das regras do Pilar 2 no Brasil representa um cálculo tributário inteiramente novo também. Se o contribuinte hoje possui custos de sistema e pessoal para os controles vinculados à apuração do lucro real e/ou do lucro presumido, o cálculo do lucro Globe e controles específicos requererá a necessidade adicional de treinamento de pessoas e investimento em sistemas que a legislação hoje dispensa.
Em relatório de 2012, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) apontou que, entre empresas de pequeno, médio e grande porte, os custos de adequação correspondiam a uma média de 1,2% do faturamento. Se somarmos os investimentos feitos e a serem feitos em adequação nos últimos e nos próximos anos, é possível que a estimativa hoje seja relevantemente maior que isso.
Alteração de benefícios fiscais federais
O Brasil tende a conceder diversos benefícios fiscais com o propósito de incentivar determinadas atividades ou certos setores da economia. A exemplo disto, temos a Lei do Bem, o Programa Universidade para Todos (PROUNI), o Programa Emergencial para Retomada do Setor de Eventos (PERSE) – todos reduzindo a alíquota efetiva do IRPJ e da CSLL seja pela concessão de reduções e isenções fiscais, seja pela redução da base de cálculo de tais tributos.
O Brasil, portanto, pode ser visto como uma jurisdição de subtributação (ou paraíso fiscal), com alíquota efetiva inferior a 15%, a depender do perfil do contribuinte e dos benefícios que a legislação oferece.
Uma das questões já apontadas pela RFB é a necessidade de adequação de benefícios fiscais já existentes, citando como exemplo mais claro a isenção de 75% do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ), inclusive adicionais não-restituíveis, para empresas que estejam situadas nas regiões norte (SUDAM) e nordeste (SUDENE) e que sejam titulares de projetos de instalação, modernização, ampliação ou diversificação de empreendimentos devidamente aprovados. O benefício é dado pelo prazo de dez anos em relação a tais projetos.
Conforme apontado pela RFB, benefícios fiscais que representem isenções de tributo sobre a renda deveriam ser revisados de forma a serem recebidos como créditos financeiros.
Esta pode ser uma tendência já verificada em situações recentes como a do Programa Mover, cuja Lei nº 14.902, de 27 de junho de 2024, concede créditos financeiros à pessoa jurídica habilitada que realize atividades de pesquisa e desenvolvimento e de produção tecnológica para as indústrias de mobilidade e logística (artigo 15). Ainda que a lei reconheça que tais valores correspondam a créditos de CSLL, o correspondente montante deve ser registrado no resultado operacional, sendo submetido a uma tributação corporativa regular (artigo 17).
Caso a legislação federal venha a ser futuramente ajustada de forma a que as empresas reflitam como receitas operacionais o que hoje é registrado diretamente como isenção do IRPJ pelas atividades na SUDAM e na SUDENE, é natural que – assim como no caso do Mover –, o benefício decorrente deste incentivo seja reduzido pela tributação (pelo IRPJ e pela CSLL) da própria receita com ele. Afinal, se a ideia é aumentar a alíquota efetiva dos tributos corporativos da empresa para fim de Pilar 2, não haveria sentido em isentar esta receita.
É consequente, no entanto, que estas alterações gerem efeitos colaterais porque atingirão também outras empresas que se beneficiem destes incentivos, mas não estejam sujeitas às regras do Pilar 2. Para estas, o aumento da carga tributária tenderá a ser absoluto a menos que venha com alguma regra de compensação.
Contencioso tributário
A partir de 2025, qualquer contribuinte potencialmente sujeito à apuração do adicional da CSLL deverá considerar os efeitos do Pilar 2 em suas decisões a respeito de participar ou não de eventual demanda contenciosa ativa envolvendo IRPJ e CSLL.
Aqui temos um exemplo bom. No final de 2023, a Lei nª 14.789 foi publicada com o intuito de passar a tributar pelo IRPJ, pela CSLL, pelo PIS e pela COFINS os benefícios de ICMS dados pelos estados do País – até então isentos de tais tributações. Como decorrência disto, diversas empresas ingressaram com processos judiciais em tentativa de manter a isenção.
Caso uma decisão final seja positiva ao contribuinte no futuro, este terá direito a recuperar os tributos recolhidos sobre tais benefícios a partir de 2024. Naquele momento, o indébito a ser registrado em linha de IRPJ e de CSLL reduzirá as correspondentes linhas de tais tributos e, por consequência, tenderá a reduzir a alíquota efetiva daquele período em comparação com o lucro Globe. Caso este efeito seja suficiente para anular o benefício do processo, tem-se um caso em que o contribuinte ganhará, mas não levará.
Naturalmente, esta questão valerá para discussões envolvendo o IRPJ e a CSLL. Outros tributos terão suas recuperações – quando for o caso – registradas nas linhas próprias dos tributos, ou seja, comporão o lucro líquido que tanto afetará o lucro real quanto o lucro Globe.
Planejamento fiscal e reestruturações societárias
O planejamento fiscal também deverá seguir uma visão de Pilar 2 em qualquer caso – seja em operações societárias envolvendo fusões e aquisições, seja nas simples reorganizações societárias.
Um exemplo dos mais costumeiros em fusões e aquisições está na compra de participações societárias com o uso de goodwill. De forma bastante simples, a legislação tributária autoriza o adquirente a registrar em separado a diferença positiva entre valor pago e percentual de participação no patrimônio líquido (com ativos líquidos ajustados a mercado) adquirido. Com a incorporação da adquirente na adquirida (ou vice-versa), o goodwill pode ser amortizado em um prazo mínimo de cinco anos.
Considerando o fato de que o goodwill não é uma despesa contábil. e sim uma exclusão nas bases de cálculo do IRPJ e da CSLL, com a incorporação temos uma redução da despesa com tais tributos, a qual não existiria se o benefício legal não tivesse existido. Esta redução afetará os tributos abrangentes dos períodos correspondentes, e, como não afeta o lucro Globe, tenderá a reduzir as taxas efetivas.
Com a redução de tais taxas, a empresa poderá ter que recolher a diferença no top up tax por meio do adicional da CSLL – ou seja, é possível que a economia gerada de um lado seja anulada (ou reduzida) de outro. Somados a isto os riscos de autuação que estruturas envolvendo goodwill historicamente apresentam, inclusive com multas agravadas, a publicação das regras do Pilar 2 tenderá a elevar decisões em determinados planejamentos tributários a um novo nível.
Ainda que seja o caso mais comum no Brasil, o uso fiscal do goodwill está longe de ser o único que planejamentos deverão ponderar: a Instrução Normativa nº 2.228 traz um capítulo inteiro com regras sobre reestruturações societárias. Afinal compras de participações societárias podem formar um grupo multinacional que passe a se vincular às regras de tributação mínima global – ou, em caso contrário, vendas de tais participações podem reduzir um grupo multinacional de forma a que suas receitas consolidadas passem a ficar abaixo de 750 milhões de euros.
Visão final
A Medida Provisória nº 1.212 possui validade a partir de 1º de janeiro de 2025 para pagamento do adicional da CSLL a partir de 2026. Uma aprovação pelas duas casas do Congresso Nacional (e sanção presidencial) até o fim de dezembro de 2024 contornaria a discussão a respeito do prazo de anterioridade nonagesimal (válida para contribuições sociais) ou prazo de anterioridade geral de exercício anual).
Caso a aprovação avance para o início de 2025, no entanto, deveremos entrar no conflito a respeito de qual o prazo correto a ser respeitado: formalmente, a CSLL possui natureza de contribuição social (sujeita, portanto ao prazo nonagesimal), mas tem fato gerador complexivo como o IRPJ (sujeito à anterioridade geral). Uma potencial discussão neste sentido penderia para o prazo nonagesimal – até mesmo pela falta de indicação contrária nos tribunais superiores – e, portanto, uma aprovação no início de 2025 terminaria por gerar um efeito retroativo à norma.
Em paralelo a esta discussão, há também a que envolve o instrumento para criação do adicional da CSLL: haveria urgência e relevância para publicação de uma Medida Provisória? A prática do governo federal em legislar por meio deste instrumento se tornou comum porém muito criticada. Para garantir a certeza de que a regra será revisada pelo Congresso Nacional, foi apresentado um Projeto de Lei (de nº 3817) com o mesmo conteúdo da Medida Provisória em análise. Caso ela seja devolvida pela falta de urgência, o projeto será analisado. Trata-se de caminho sem precedentes, mas que mostra a real importância que está sendo dada ao assunto.
Por fim, outro ponto válido a se apontar é o fato de que a enorme parte das regras não está descrita na Medida Provisória nº 1.212, e sim na Instrução Normativa nº 2.228 – o que é incomum, já que o papel de uma Instrução Normativa é regular o texto legal, e não tomar seu lugar. O argumento para isto é claro: as regras da OCDE, de onde se origina o Pilar 2, são atualizadas constantemente, e atualizações em texto de lei ordinária (ainda que por Medida Provisória) são mais morosas e dependem do sabor da política. Na medida em que a Instrução Normativa exceda seu poder de mero regulamento, no entanto, abre-se o flanco para questionamentos a respeito da legalidade de suas normas.
A despeito das discussões acima, parece claro que o Pilar 2 veio para ficar. Ao trazer uma nova apuração paralela e adicional à do lucro real e/ou do lucro presumido, ele adicionará sofisticação a determinados contribuintes, eventualmente reduzindo a vantagem em alguns contenciosos e planejamentos tributários. E é com esta nova realidade que o contribuinte deverá conviver a partir de agora.
Para mais informações sobre o tema, conheça a prática de Tributário do Mattos Filho.