Análise: ‘Pacote Anticrime’ impacta a Justiça Criminal e altera 17 leis vigentes
Reforma legislativa altera o Código Penal, o Código de Processo Penal e a Lei de Execução Penal; entenda as mudanças
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Em edição extra do Diário Oficial da União, o Presidente da República sancionou a Lei 13.964/19, conhecida como “Pacote Anticrime“.
Trata-se de reforma legislativa de grandes impactos para a Justiça Criminal, visto que, de uma só vez, altera nada menos do que 17 leis atualmente vigentes, entre as quais o Código Penal, o Código de Processo Penal e a Lei de Execução Penal.
Entenda abaixo as principais mudanças em cada um:
Código Penal
Em relação ao Código Penal, a nova lei criou uma hipótese fictícia de legítima defesa do agente de segurança pública, de aplicabilidade e técnica jurídica discutíveis (novo art. 25, parágrafo único); dispôs-se sobre a execução da pena de multa (novo art. 51); alterou de 30 para 40 anos o tempo máximo de cumprimento de penas privativas de liberdade (novo art. 75); ampliou os requisitos para concessão de livramento condicional (novo art. 83, inc. III); criou uma hipótese de perda “dos bens […] correspondentes à diferença entre o valor do patrimônio do condenado e aquele que seja compatível com o seu rendimento lícito“, de difícil e perigosa aplicação concreta (novo art. 91-A); ampliou o rol de causas impeditivas da prescrição (novo art. 116, incs. III e IV).
A lei também incluiu novas hipóteses de roubo majorado – a saber, pelo emprego de arma branca (novo art. 157, § 2º, VII) e pelo emprego de arma de fogo de uso restrito ou proibido (art. 157, § 2º-B); e aumentou de oito para 12 anos a pena máxima do crime de concussão (novo art. 316), equiparando-a à do crime de corrupção e corrigindo o que parece ter sido um esquecimento do legislador da Lei 10.763/03 que, à época, aumentou somente as penas da corrupção ativa e passiva.
Código de Processo Penal
Mais profundas são as mudanças no Código de Processo Penal. Embora não constasse do projeto original, a figura do “juiz de garantias”, responsável por controlar a legalidade da investigação criminal (fase prévia ao processo judicial), foi contemplada no texto aprovado. A decisão atendende a uma demanda de mais de uma década dos pesquisadores de direito processual penal que, inspirados em modelos legislativos de diferentes países dos continentes europeu e americano, reclamavam ao direito brasileiro sobre a separação do juiz responsável pela investigação do processo e sentença, com vistas a propiciar maior independência e isenção ao ato de julgar.
Por esses motivos, a ideia já fora contemplada no Projeto de Novo Código de Processo Penal (PLS 156/09), apresentado ao Senado Federal há uma década e ainda em tramitação. Os debates foram aproveitados, neste ano, pelo Congresso Nacional para incrementar o projeto anticrime. A inovação (novos arts. 3º-A a 3º-F do CPP) homenageia a imparcialidade da jurisdição e ajuda a aproximar o Brasil dos sistemas processuais da maioria dos países democráticos, razões por que é bem-vinda.
No entanto, existem problemas, sendo o principal deles a extensão da competência do juiz de garantias até momento posterior ao da instauração do processo (v. novo art. 3º-C), quando o recebimento da denúncia e todo ato posterior deveria caber ao juiz do processo.
Outro instituto processual que mereceu especial atenção na nova lei refere-se à proteção à cadeia de custódia da prova (novos arts. 158-A a 158-F do CPP), que visa dar maior confiabilidade às provas coletadas e, portanto, às decisões judiciais que nelas se fundem, sendo este outro tema em que a legislação brasileira se encontrava muito atrasada em relação às leis processuais de outros países.
Ainda quanto a alterações promovidas no Código de Processo Penal, criaram-se garantias defensivas especiais para agentes de segurança pública (novo art. 14-A); modificou-se o regramento legal atinente ao arquivamento de inquéritos (novo art. 28); criou-se legislativamente o acordo de não persecução penal para crimes de média gravidade (art. 28-A); alterou-se o tratamento da alienação de coisas apreendidas (novo art. 122), bem como da destinação de obras de arte que tenham sido objeto de perdimento (novo art. 124-A), venda (novo art. 133) e utilização por agências públicas (novo art. 133-A) de outros bens.
Também reforçou-se a garantia contra o uso indevido de provas ilícitas (novo art. 157, § 5º); aperfeiçoou-se o capítulo referente a medidas cautelares, com a importante supressão, há muito reclamada pela doutrina, da possibilidade de que sejam decretadas pelo juiz sem um prévio pedido do Ministério Público ou representação da autoridade policial (novo art. 282, § 2º). Reafirmou-se a importância das audiências de custódia (novo art. 310) e a necessidade da decretação da prisão preventiva ser concretamente justificada (novos arts. 311, 312, 313, 315 e 316); buscou-se dar a devida efetividade (novo art. 315, § 2º) à garantia constitucional da motivação das decisões judiciais (CF, art. 93, IX), a exemplo do que foi feito na reforma do Código de Processo Civil de 2015 (CPC, art. 489, § 1º).
Dispôs-se sobre a execução provisória de penas impostas pelo Tribunal do Júri (novo art. 492) e, finalmente, alterou-se pontualmente o sistema de nulidades (novo art. 564, inc. V) e o recursal (novos arts. 581, XXV e 638), para que mantenham coerência com as demais modificações promovidas.
Lei de Execução Penal
Quanto às alterações na Lei de Execução Penal, a nova lei detalhou o regramento da identificação de perfil genético mediante extração de DNA dos condenados por crimes violentos e/ou hediondos (novo art. 9º-A, §§ 1º-A, 3º, 4º e 8º). No mais, também endureceu as regras de execução de penas: ampliou a incidência do regime disciplinar diferenciado para presos perigosos (novo art. 52); elevou o tempo de cumprimento de pena necessário à progressão de regime (novo art. 112); e restringiu o direito à saída temporária (art. 122, § 2º).
Outras mudanças:
O Pacote Antricrime alterou, ainda, as seguintes leis:
– Leis dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/90), ampliando o rol de delitos que devem ser assim considerados e, portanto, merecem tratamento penal e processual mais duro;
– Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92), permitindo o acordo de não persecução cível. Também alterou a Lei de Interceptações Telefônicas (Lei 9.296/96), para regular a captação ambiental de sinais eletromagnéticos, óticos ou acústicos, e seu uso como meio de prova;
– Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei 9.613/98), para permitir, na investigação dos crimes por ela regulados, o uso das técnicas de ação controlada e de infiltração de agentes – até então restritas às investigações de organizações criminosas;
– Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/03) para endurecer penas de crimes relacionados ao uso e comércio de armas e criar o Banco Nacional de Perfis Balísticos. Reformou pontualmente a Lei de Drogas (Lei 11.343/06), para inserir nova modalidade de delito equiparado ao tráfico;
– Modificou o regramento da execução penal em estabelecimentos penitenciários federais (Lei 11.671/08);
– Reformou a Lei 12.037/09, para instituir o Banco Nacional Multibiométrico e de Impressões Digitais;
– Alterou a Lei 12.694/12, para determinar a instalação, nas Justiças Federal e Estadual, de varas criminais colegiadas para o processamento e julgamento de crimes relacionados a organizações criminosas armadas;
– Alterou a Lei de Organizações Criminosas (Lei 12.850/13), para endurecer a execução de penas de condenados a crimes nela previstos e para reformar o regramento da colaboração premiada, bem como o da infiltração de agentes, instituindo a figura da infiltração de agentes de polícia por meio virtual.
Merecem especial destaque duas das mudanças listadas:
A reforma da Lei de Improbidade Administrativa (LIA) para admitir acordos (novo art. 17, §§ 1º e 10-A da LIA), que já estava prevista no texto original do projeto anticrime e era, a nosso ver, um dos mais bem-vindos e, ao mesmo tempo, menos notados pontos daquele texto. Esta contemplava uma antiga demanda de advogados que, acompanhando a evolução da operação ‘Lava Jato’ e de outras investigações recentes, apontavam a vedação a acordos na LIA como uma fonte de significativa insegurança jurídica para a cooperação com órgãos do Estado, que poderia eximir riscos de sanções econômicas baseadas na Lei Anticorrupção, mas não aqueles baseados na LIA.
Há anos vínhamos alertando essa incoerência sistêmica a órgãos do Ministério Público Federal e Estadual, CGU, AGU e Poder Judiciário, e consideramos a medida um avanço importante para atender ao interesse público e ao interesse de empresas e empresários;
As alterações no regramento da colaboração premiada (novos arts. 3-A a 3-C, 4º, 5º e 7º da Lei 12.850/12), as quais abrangem o processo de negociação do acordo e diversas de suas implicações para colaboradores e para não-colaboradores. Tendem a dar mais segurança jurídica para os acordos e vêm abolir muitas dúvidas que, nos últimos anos, suscitaram polêmicas nos tribunais em vista do insuficiente – e por vezes equivocado – regramento legal existente, conforme também tivemos oportunidade de apontar em casos concretos e em debates com a comunidade jurídica e órgãos de persecução penal.
Os institutos de acordo e cooperação com o Estado, apesar de não serem e não poder serem vistos como panaceia para solucionar todo e qualquer problema jurídico, constituem, ao mesmo tempo, parte essencial das políticas anticorrupção atuais do Estado brasileiro e importante estratégia de defesa para determinadas situações. Estes devem, portanto, merecer especial atenção de legisladores e tribunais para que apresentem a segurança jurídica necessária e, dessa forma, sejam incentivados e tragam benefícios ao interesse público e à iniciativa privada, a bem do desenvolvimento econômico e da justiça.