Especial Dia da Mulher: oportunidades e aspectos regulatórios de FemTechs
Setor apresenta possibilidades significativas para desenvolvimento de diversas iniciativas pelas indústrias de life sciences e saúde
Assuntos
O termo Femtech representa uma indústria em constante crescimento que combina tecnologia e inovação para oferecimento de soluções direcionadas à saúde de mulheres cisgênero, transgênero e não-binárias. Sua relevância vem ganhando tração por três principais motivos:
- Estatisticamente, o público feminino é mais adepto a cuidar da própria saúde do que o masculino, inclusive, adotando rotinas periódicas de exames, consultas e rastreamento de potenciais doenças;
- A saúde da mulher requer mais cuidados do que a saúde do homem, a exemplo de cuidados na gestação, amamentação e menopausa;
- Em meio às regras de quarentena, isolamento social e restrição de circulação, a pandemia tornou ainda mais urgente o desenvolvimento de serviços e produtos que pudessem auxiliar as mulheres no acompanhamento clínico e remoto da própria saúde – por exemplo, durante gravidez e pós-parto, no monitoramento de fertilidade para mulheres que adiaram planos de engravidar e no cuidado de doenças crônicas.
Segundo relatório da consultoria Frost & Sullivan, o mercado brasileiro de FemTechs deve crescer 15,2% ao ano, chegando a US$ 3,96 bilhões até 2025. Embora a densidade do cenário regulatório dependa do tipo de produto ou serviço a ser ofertado, o setor apresenta oportunidades significativas para desenvolvimento de inúmeras iniciativas pelas indústrias de life sciences e saúde, dentre as quais destacam-se:
- Desenvolvimento de dispositivos médicos, inclusive vestíveis ou sob medida, ou aplicativos de monitoramento de pacientes, por exemplo, para tratamento e acompanhamento de período menstrual e de ovulação;
- Plataformas virtuais de telessaúde voltadas ao público feminino;
- Uso de blockchain e ferramentas de análise preditiva para aconselhamento genético, suporte ao planejamento familiar, reposição hormonal e tomadas de decisão clínica em ações de prevenção, diagnóstico, tratamento e anticoncepção;
- Uso de inteligência artificial para acelerar pesquisa e desenvolvimento de novos tratamentos para diferentes tipo de câncer, como de mama, ovário, colo de útero e tireoide, além de doenças sexualmente transmissíveis e dermatológicas;
- Desenvolvimento de testes laboratoriais remotos (Point-of-Care Testing) e dispositivos de medição de temperatura corporal para auxiliar no processo de diagnóstico de câncer ainda em estágio inicial.
Confira abaixo algumas regulações que devem ser consideradas neste contexto:
Telessaúde
Mais de dois anos após a publicação da Lei nº 13.989/2020 e da Portaria nº 467/2020 do Ministério da Saúde, que autorizaram as ações de telemedicina em caráter excepcional e temporário, o Congresso Nacional recentemente aprovou a Lei nº 14.510/2022, que alterou a Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080/1990), a fim de autorizar e regular a prática da telessaúde em todo o território nacional de forma definitiva.
Para contexto, a telessaúde é definida como a modalidade de prestação de serviços de saúde a distância, por meio da utilização das tecnologias da informação e da comunicação e mediante, entre outros, à transmissão segura de dados e informações de saúde, por via de textos, sons, imagens ou outras formas adequadas.
Dentre os principais aspectos da nova lei, destaca-se que a prática da telessaúde exige consentimento livre e esclarecido do paciente ou de seu representante legal, que terá o direito de recusar a modalidade a distância e solicitar atendimento presencial. Além disso, a norma deve ser interpretada de forma associada a outras legislações, como o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), a Lei do Ato Médico (Lei nº 12.842/2013); o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990); a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018); e, quando cabível, da Lei do Prontuário Eletrônico (Lei nº 13.787/2018).
Além disso, é importante notar que a telessaúde compreende os serviços relacionados a todas as profissões da área da saúde regulamentadas pelos órgãos competentes do Poder Executivo federal. Aliás, os conselhos federais de Enfermagem (Resolução nº 696/2022), Fonoaudiologia (Resolução nº 580/2020), Medicina (Resolução nº 2.314/2022) e Psicologia (Resolução nº 11/2018) já estabeleceram regulamentações específicas sobre a prestação de serviços a distância por esses profissionais de saúde.
O uso da telessaúde em larga escala também deve impulsionar, dentre outros temas, iniciativas de Point-of-Care Testing (PoCT), ou seja, qualquer tipo de teste de diagnóstico realizado remotamente, dentro ou fora de ambientes hospitalares ou laboratoriais. Esse tema foi objeto de consulta e audiência pública recente, bem como o uso de softwares como dispositivo médico, que, agora, contam com uma regulamentação específica.
Softwares como Dispositivo Médico
Softwares médicos (Software as a Medical Device ou SaMD) são definidos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) como produto ou aplicação destinados a uma ou mais finalidades indicadas na definição de dispositivo médico e que desempenha suas funções sem ser parte do hardware de um dispositivo médico, tendo como características possíveis:
- Ser executado em uma plataforma computacional de propósito geral (finalidade não médica);
- Ser usado em combinação (por exemplo, como módulo) com outros produtos, incluindo outros dispositivos médicos.
Ciente da crescente adoção de softwares por pacientes e profissionais de saúde para os propósitos acima, a Anvisa estabeleceu requisitos específicos para a regularização desses produtos, por meio da RDC Anvisa nº 657/2022. A criação de um ato normativo específico às necessidades dos softwares médicos também é consistente com a prática de autoridades sanitárias internacionais e o Fórum Internacional de Dispositivos Médicos (International Medical Device Regulators Forum – IMDRF), do qual o Brasil é signatário juntamente com a União Europeia, além de países como Estados Unidos, Canadá e Austrália, cujos regramentos foram analisados pelo corpo técnico da Anvisa no processo de elaboração da nova norma.
Para os próximos meses, espera-se que a Anvisa avalie a necessidade de um regramento específico para uso de ferramentas de inteligência artificial em SaMDs.
Reprodução assistida
A realização de técnicas de reprodução assistida é permitida para doação de gametas e para preservação de gametas, embriões e tecidos germinativos por razões médicas e não médicas, desde que exista possibilidade de sucesso e baixa probabilidade de risco grave à saúde do(a) paciente ou do possível descendente, conforme prevê a Resolução CFM nº 2.320/2022 do Conselho Federal de Medicina (CFM).
Fruto de uma recente revisão promovida pela entidade médica, essa norma estabelece também a revisão do número de embriões gerados em laboratório, a maioridade necessária para doação de gametas, a consonância com a Lei de Biossegurança (Lei nº 11.105/2005) e alternativas à relação com cedentes temporárias de útero são algumas das principais alterações.
A depender da solução desenvolvida por uma FemTech, regulações adicionais podem ser aplicáveis ao modelo de negócios da empresa, por exemplo:
- Código de Ética Médica, que prevê regras gerais para o exercício da medicina e, em particular, dispõe sobre as regras que regem o sigilo do médico e a relação médico-paciente;
- Regulamento técnico para o cadastramento nacional dos Bancos de Células e Tecidos Germinativos (BCTG) e envio da informação de produção de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro;
- Boas Práticas em células germinativas, tecidos germinativos e embriões humanos, para uso terapêutico (RDC Anvisa nº 771/2022).
Ensaios clínicos em mulheres
Para que um fabricante obtenha uma autorização para comercialização de medicamentos e produtos para saúde, a autoridade sanitária de cada país requer a apresentação de um dossiê com evidências técnicas a respeito do produto. Tais evidências são obtidas por meio de ensaios clínicos, realizados com o objetivo de confirmar hipóteses sobre os efeitos, indicações terapêuticas ou a identificação de reações adversas do produto investigado, determinando sua eficácia e segurança em voluntários humanos.
É importante notar que ensaios clínicos em seres humanos estão sujeitos à avaliação da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), entidade ligada ao Conselho Nacional de Saúde (CNS), bem como dos Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs). Nesse aspecto, pesquisas realizadas em mulheres grávidas ou em idade fértil requerem a avaliação de riscos e benefícios sobre eventuais interferências sobre a fertilidade, gravidez, embrião ou o feto, trabalho de parto, puerpério, lactação e o recém-nascido.
A Anvisa também pode regular o tema em alguma medida, especialmente caso o ensaio clínico tenha finalidade regulatória, ou seja, para embasar o registro de um medicamento ou dispositivo médico no Brasil e sua posterior comercialização.
Atualmente, a Câmara dos Deputados discute um marco regulatório para o tema, por meio do Projeto de Lei nº 7.082/2017. O texto em discussão já foi aprovado pelo Senado Federal e aguarda ser pautado para discussão no plenário da Câmara dos Deputados, e propõe uma série de mudanças visando ao progresso e fluidez dos processos inerentes aos estudos clínicos, como o fim de duplas aprovações éticas, além de critérios para obrigatoriedade de fornecimento de tratamento aos participantes após o término do estudo clínico.
Além disso, no final de 2022, foi sancionado o Decreto nº 11.287/2022, que instituiu formalmente a Rede Brasileira de Pesquisa Clínica (RBPClin), destinada a promover e incentivar o desenvolvimento científico, tecnológico e a inovação nacional em pesquisa clínica. A entidade funcionará como fórum de articulação intersetorial e de cooperação técnico-científica, visando ao fortalecimento do setor no Brasil.
Proteção de Dados
De acordo com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), dados referentes à saúde ou vida sexual, genéticos ou biométricos, quando vinculados a uma pessoa natural (ou seja, identificam um indivíduo), serão considerados dados pessoais sensíveis. Logo, caso uma FemTech deseje realizar o tratamento desses dados, deverá fazê-lo mediante bases legais específicas:
- Consentimento do titular ou seu responsável legal;
- Cumprimento de obrigação legal ou regulatória – por exemplo, em razão da verificação de doença de notificação compulsória às autoridades sanitárias;
- Execução, pela Administração Pública, de políticas públicas previstas em leis ou regulamentos – como aquelas que derivam da garantia constitucional do direito à saúde;
- Realização de estudos por órgão de pesquisa;
- Exercício regular de direitos;
- Proteção da vida ou da incolumidade física do titular ou de terceiro;
- Tutela da saúde, desde que no âmbito de procedimento realizado por profissionais da área da saúde ou por entidades sanitárias;
- Garantia da prevenção à fraude e à segurança do titular.
Vale ressaltar que, como regra geral, a LGPD veda expressamente a comunicação ou o uso compartilhado entre controladores de dados pessoais sensíveis referentes à saúde, com objetivo de obter vantagem econômica. A exceção encontra-se nas hipóteses de prestação de serviços de saúde, assistência farmacêutica e de assistência à saúde, quando em benefício dos interesses dos titulares de dados, e para permitir a portabilidade de dados, quando solicitada pelo titular ou, ainda, transações financeiras e administrativas resultantes do uso e da prestação dos serviços de saúde e assistência farmacêutica.
Além disso, independentemente do porte econômico da Femtech, é improvável que as atividades envolvendo dados pessoais estejam sujeitas a algum tipo de flexibilização, tendo em vista que o tratamento de dados sensíveis de saúde é considerado de alto risco pelo Conselho Diretor da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), nos termos da Resolução ANPD nº 2/2022).
Ao longo dos próximos meses, é esperado que outras regulações complementares apresentem algum impacto para os setores de life sciences e saúde, como sobre dados biométricos, uso de dados pessoais para fins acadêmicos e para a realização de estudos por órgão de pesquisa e uso de Inteligência Artificial.
Para mais informações, consulte a prática de Life sciences e Saúde do Mattos Filho.