Caso Airbus: uma breve análise comparativa
A legislação britânica pode servir para aprimorar os esforços de combate à corrupção no Brasil
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Em tempos em que o novo coronavírus paira sobre todos os assuntos em discussão, sem excluir a relevância do tema, voltemos nossos olhos a um outro importante acontecimento de 2020. Em janeiro deste ano, a gigante Airbus firmou acordos com autoridades na França, nos Estados Unidos e no Reino Unido, para pôr fim a acusações de conduta corruptiva por parte da empresa. Para se redimir das acusações de pagamento indevido a autoridades de mais de 15 países, a companhia se comprometeu a pagar o expressivo valor de €3,6 bilhões, dos quais €991 milhões serão encaminhados aos cofres públicos britânicos, €2,1 bilhões ao tesouro francês e o saldo às autoridades norte-americanas. O acordo com o Serious Fraud Office (SFO) do Reino Unido vinha sendo negociado desde 2016, mas apenas entrou em vigor em 31 de janeiro de 2020, quando a High Court of Justice do país homologou os seus termos.
Sob o prisma da legislação brasileira, a necessidade de revisão judicial dos termos de acordo para pôr fim a acusações de corrupção por parte de pessoas jurídicas é certamente um dos fatores mais interessantes do acordo entre o SFO e a Airbus. A medida adotada pelo legislador inglês confere ao Poder Judiciário a atribuição de determinar se a celebração do pacto atende aos interesses maiores do Estado – a preservação e o fomento do interesse público e da Justiça –, insulando discussões de natureza política ou a influência de grupos de pressão.
No Brasil, empresas envolvidas em atos de corrupção estão sujeitas a responsabilização nas esferas cível e administrativa, mas não criminal, e os acordos de leniência independem de homologação judicial para a sua validade. Uma vez presentes os requisitos formais, como as cláusulas mínimas previstas no Decreto Federal 8.420/2015 e na regulamentação de cada uma das autoridades competentes para celebrar o acordo – que, infelizmente, não são poucas –, a transação será eficaz e vinculante em relação às partes. Não há previsão legal que determine a revisão judicial dos acordos de leniência celebrados com pessoas jurídicas no Brasil.
Ao longo de mais de 30 páginas, a magistrada britânica Victoria Sharp concluiu pela aprovação do acordo do SFO com a Airbus, depois de ponderar minuciosamente as consequências macro e microeconômicas, sociais e fáticas decorrentes da celebração do pacto. Para enfrentar a dimensão dos impactos das condutas ilícitas e da penalização da Airbus, a decisão discorreu sobre o duopólio do mercado de fabricação de aeronaves comerciais, reconheceu os efeitos que sanções administrativas teriam sobre trabalhadores, acionistas e fornecedores, avaliou os reflexos que uma condenação da empresa teria sobre o PIB de países em que atua. Constatou e explicitou, ainda, as “exemplares cooperação e remediação” empreendidas pela sociedade desde a sua autodenúncia às autoridades.
A imprescindibilidade de revisão judicial do acordo consta do UK Crime and Courts Act de 2013, que dispõe que o deferred prosecution agreement – figura análoga ao acordo de leniência brasileiro – só passa a viger a partir da aprovação judicial de seus termos. Dispõe a norma que a corte deve apreciar se o acordo atende cumulativamente à justiça, à razoabilidade e à proporcionalidade [Schedule 17, 8 (1) (b), Crime and Courts Act 2013]. A decisão judicial que homologa o acordo entre o SFO e a Airbus atesta, de maneira inequívoca, que, ao analisar o preenchimento desses requisitos, o juiz adentra o mérito do acordo e sobrepesa os efeitos de seus dispositivos escritos sobre o plano real e fático. Em última análise, o Judiciário termina por ponderar os riscos e a conveniência de preservação da pessoa jurídica, como um núcleo de organização e produção da atividade econômica com importante efeito social sobre as comunidades em que atua. Esse exercício gera apenas benefícios: a justa e necessária punição de pessoas jurídicas envolvidas em atos de corrupção não pode ocorrer em desconexão com a realidade, sob o prejuízo de ignorar o bem-estar social impulsionado pelas empresas – que geram empregos, arrecadação fiscal, desenvolvimento tecnológico e movimentação econômica, bem como servem de plataforma para o fomento da ética nos negócios nas comunidades em que atua – e desencorajar a colaboração com as autoridades públicas.
Conforme já exposto acima, no Brasil o Judiciário não se envolve no processo de validação de acordos de leniência – a não ser que haja adesão a seus termos por parte de pessoas físicas. Neste caso específico, a homologação judicial da transação com efeitos jurídicos penais se torna necessária. A Lei das Organizações Criminosas impõe requisitos de ‘regularidade’ e ‘legalidade’ para a indispensável homologação judicial dos acordos de colaboração premiada brasileiros [Art. 4º, §7º, I da Lei nº 12.850/2013]. Esses requisitos se aplicam, por extensão, aos acordos de leniência a que venham a aderir pessoas físicas. O Supremo Tribunal Federal brasileiro já decidiu que tais análises de legalidade e regularidade pelo Judiciário se limitam ao juízo de compatibilidade entre a avença pactuada e o sistema normativo vigente.
Dessa maneira, prepondera, nos pactos em questão, a vontade das partes, desde que seus termos estejam adequados às normas vigentes; ao passo que, no Reino Unido, é preciso que os acordos sejam justos, razoáveis e proporcionais – o que impõe ao Judiciário a profunda e minuciosa análise do mérito do pacto, tendo em vista o interesse público das regiões em que a empresa contratante exerce suas atividades sociais. Note-se que, embora não seja mandatório, não é vedado ao magistrado brasileiro que analise o mérito do acordo de leniência posto sob seu crivo. Seria, inclusive, recomendável que o fizesse de maneira detida e minuciosa, diante da importância da preservação das empresas para o bem-estar social e econômico, pautado nos princípios de razoabilidade, proporcionalidade e interesse público que devem guiar a atuação da administração pública.
Dessa maneira, o exemplo do Reino Unido, cuja legislação que versa sobre atividades de natureza corruptiva por empresas é tão recente quanto a nossa – enquanto as leis que versam sobre direitos individuais e deveres do Estado nos antecedem em centenas e centenas de anos – convida à reflexão quanto ambiente de combate à corrupção no Brasil. A celebração de acordos de leniência depende, a priori, de que a empresa se manifeste sobre o seu interesse de cooperar, admita seu envolvimento nas irregularidades e cesse-o por completo. O cumprimento desses requisitos é absolutamente essencial para a preservação do interesse público e para a sociedade como um todo. A questão é se a legislação não deveria ir além, para formalmente demandar que a estrutura do acordo de leniência contemplasse, em seu bojo, a preservação da empresa – sem prejuízo, é claro, da eliminação dos males da corrupção e da correção do processo de condução de suas atividades sociais, como condições indispensáveis à validade do pacto.
A revisão judicial do mérito de um acordo de colaboração com o poder público, com vistas à real preservação da justiça e fomento do interesse público, é uma forma eficaz de assegurar o equilíbrio entre a punição da pessoa jurídica, a recuperação dos danos causados à sociedade e a preservação da empresa – ou, em certos casos, como nos mostrou a Lava Jato, a sobrevivência de setores da economia nacionais essenciais ao crescimento e desenvolvimento do país. Os resultados se manifestam no fortalecimento da confiança na administração pública e no encorajamento de uma postura colaborativa por empresas infratoras. É importante que o caso Airbus e a experiência da aplicação da legislação britânica sejam contemplados por nossos legisladores, com olhos voltados ao desenvolvimento do nosso marco legislativo.
*Colaborou Larissa Sabbad Guedes Campos Galdi
Este artigo foi originalmente publicado no Jota, no dia 8 de abril de 2020. Clique aqui para acessá-lo.