A “trava de 30%” na extinção da pessoa jurídica
Aproveitamento dos saldos de prejuízo fiscal e base de cálculo negativa da CSLL no encerramento da sociedade
Assuntos
A tributação sobre a renda da pessoa jurídica, assim entendida como a exigência de tributos sobre o acréscimo patrimonial auferido por uma entidade ao longo de sua vida, naturalmente, envolve a delimitação, pelo legislador, de um período dentro do qual será verificado esse acréscimo do patrimônio.
Nesse sentido, deve-se destacar que, do ponto de vista teórico, o acréscimo patrimonial de uma pessoa jurídica somente poderia ser mensurado levando-se em consideração todos os elementos positivos e negativos que afetaram o seu patrimônio ao longo de sua vida.
No entanto, a mensuração do acréscimo patrimonial de uma entidade a partir dessa metodologia levaria, no limite, à exigência de tributos apenas quando da extinção da pessoa jurídica. Como isso não é compatível com a necessidade de arrecadação de recursos pelo Estado, as bases de cálculo dos tributos incidentes sobre a renda, que no Brasil são o Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e a Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido (CSLL), são apuradas em bases periódicas. Assim, apura-se o acréscimo patrimonial de uma sociedade dentro de um trimestre (regra geral) ou ano-calendário (exceção), exigindo-se sobre esse montante o IRPJ e a CSLL.
Não obstante, em linha com a noção de que o acréscimo patrimonial somente pode ser mensurado se considerados todos os elementos positivos e negativos que afetaram o patrimônio da pessoa jurídica ao longo de sua existência, a legislação permite que os resultados negativos (prejuízo fiscal – PF e base de cálculo negativa da CSLL – BCN) sejam compensados com resultados futuros, de modo que, ao final, o IRPJ e a CSLL incidam apenas sobre o efetivo acréscimo patrimonial auferido pela entidade durante a sua existência.
Contudo, tal mecanismo de compensação sofre algumas restrições, que tem como objetivo garantir uma maior estabilidade da arrecadação tributária. Por meio do artigo 58 da Lei nº 8.981, de 20 de janeiro de 1995, o legislador instituiu o que ficou, ao longo dos anos, conhecido como a “trava de 30%”, uma regra de acordo com a qual o lucro líquido, ajustado pelas adições e exclusões, poderá ser reduzido por meio da compensação de saldos de PF e BCN até o limite de 30%. A título ilustrativo, se a pessoa jurídica apurar lucro líquido ajustado no valor de R$ 100,00, será admitida a utilização de saldos de PF e BCN até o limite de R$ 30,00.
A dúvida que surgiu logo após a publicação desse diploma legal, no entanto, foi se a “trava de 30%” seria aplicável também à apuração do IRPJ e da CSLL no evento de extinção da pessoa jurídica (por exemplo, no caso de incorporação), tendo em vista a inexistência de qualquer disposição expressa na Lei nº 8.981/95 sobre essa matéria.
Posições dos contribuintes e do Fisco
Na visão dos contribuintes, essa limitação não deveria ser aplicada a esse evento, uma vez que o legislador, ao promulgar tal lei , não teria buscado extinguir o direito dos contribuintes de utilizar os saldos de PF e BCN acumulados ao longo dos anos, mas, tão somente, disciplinado como esse saldo deveria ser utilizado pela sociedade. Logo, como os saldos de PF e BCN não podem ser transferidos a terceiros, deveria ser permitida a sua utilização integral no evento da extinção da pessoa jurídica, sob pena de se exigir IRPJ e CSLL sobre valores que não representariam efetivo acréscimo patrimonial.
A Receita Federal do Brasil (RFB), por outro lado, passou a adotar posicionamento contrário, lavrando autos de infração em face dos sucessores para exigência de IRPJ e da CSLL relativos a uma suposta compensação a maior de saldos de PF e BCN pela sociedade extinta, o que deu início a um grande contencioso envolvendo a matéria.
Jurisprudência do CARF
Nesse sentido, no Repertório Analítico de Jurisprudência do CARF, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), foi identificado que, após terem sido proferidas decisões conflitantes, a Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF), responsável pela uniformização da jurisprudência no âmbito do antigo Conselho de Contribuintes e atual Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), manifestou-se, em 2 de dezembro de 2002, pela primeira vez acerca da matéria (acórdão nº 01-04.258).
Na ocasião, o entendimento que prevaleceu, por expressiva maioria de votos (14 a 2), foi o de que a denominada “trava de 30%” não seria aplicável aos casos de extinção da pessoa jurídica. Isso porque, de acordo com a Turma, ao estabelecer a “trava de 30%”, o legislador teria preservado o direito do contribuinte de aproveitar todo o saldo de PF e BCN em períodos futuros, o que estaria claro na exposição de motivos da norma, que indica que “a limitação de 30% garante uma parcela expressiva de arrecadação, sem retirar do contribuinte o direito de compensar“.
No entanto, como reflexo do julgamento do Recurso Extraordinário nº 344.994 pelo Supremo Tribunal Federal, em 7 de junho de 2002, no qual foi declarada a constitucionalidade da “trava de 30%”, a CSRF acabou, em 2 de outubro de 2002, por meio do voto de qualidade, alterando o seu posicionamento, passando a entender pela aplicabilidade do limite também para os casos envolvendo a extinção da pessoa jurídica (acórdão nº 9101-00.401).
Sobre essa mudança de posicionamento por parte da CSRF, algo que deve ser esclarecido diz respeito ao fato de que o STF, quando do julgamento mencionado, não analisou a aplicação da “trava de 30%” ao evento de extinção da pessoa jurídica, mas somente a constitucionalidade desse limite de aproveitamento de saldos PF e BC.
No entanto, por ocasião do julgamento, os ministros se manifestaram no sentido de que o aproveitamento de saldos de PF e BCN representaria um benefício fiscal, o que serviu, posteriormente, de fundamento para que, no âmbito da CSRF, passasse a prevalecer o posicionamento de que a “trava de 30%” seria aplicável também aos casos envolvendo a extinção da pessoa jurídica.
A título ilustrativo, podem ser mencionados os acórdãos nº 9101-004.230 (sessão de 6 de junho de 2019), 9101-003.807 (sessão de 2 de outubro de 2018), 9101-003.424 (sessão de 6 de fevereiro de 2018), 9101-003.256 (sessão de 5 de dezembro de 2017) e 9101-003.126 (sessão de 3 de outubro de 2017), proferidos ao longo dos últimos anos, que adotam exatamente essa linha de argumentação para negar ao contribuinte o direito de aproveitar integralmente os saldos de PF e BCN no evento de extinção da sociedade.
Apesar disso, deve-se destacar que grande parte das decisões desfavoráveis aos contribuintes foram proferidas pela CSRF por meio do voto de qualidade, isto é, em julgamentos nos quais houve empate de votos. Isso é relevante pelo fato de que, com o advento da Lei n° 13.988 de 14 de abril 2020, houve uma alteração da sistemática do voto de qualidade, de modo que, havendo empate de votos em processo envolvendo a determinação e exigência do crédito tributário, a discussão deverá ser resolvida em favor do contribuinte.
Por esse motivo, é possível que nas próximas ocasiões que a CSRF vier a analisar a matéria, prevaleça o entendimento, ao nosso ver mais acertado, de que a “trava de 30%” não é aplicável aos casos envolvendo a extinção da pessoa jurídica.
Para saber mais sobre o tema, acompanhe a série especial ‘Impactos do fim do voto de qualidade’