Crimes e trapaças em jogos online: aspectos penais e a relevância dos Termos de Uso
Ainda que ocorram apenas num contexto de entretenimento, práticas como essas encontram clara vedação legal
Como usuários que somos de programas de computador, aplicativos e demais recursos tecnológicos, é difícil discordar da crescente percepção de que ilícitos que antes eram típicos apenas no mundo real passaram, de diferentes modos, a ser realizados no ambiente virtual e até com maior sofisticação. Não nos referimos apenas às tentativas de obtenção de dados de cartões de crédito e outros de natureza financeira. O mundo virtual permite a monetização de práticas ilícitas que por vezes passam despercebidos do senso comum.
A título de exemplo, não é incomum o uso e comercialização de cheats (trapaças) para muitos jogos online. O código fonte do software é modificado para que o usuário tenha vantagens em relação aos demais jogadores, tais como a possibilidade de ver o que ocorre do outro lado de uma parede, de obtenção de armas diferenciadas ou auxílio de mira, dentre outros que não fazem parte das regras estabelecidas pelo fabricante.
Por mais que se trate apenas de um ambiente de entretenimento, práticas como essas encontram clara vedação legal. No exemplo acima, a venda de cheats pode ser penalizada com reclusão de 1 a 4 anos e multa nos termos do artigo 12 da Lei nº 9.609/1998 (Lei do Software) e, ao comercializar cheats com o nome e logotipo do jogo, o vendedor pode incorrer no crime de violação de marca, apenado com 3 meses a 1 ano e multa, conforme artigo 189 da Lei nº 9.279/96.
No entanto, embora haja instrumentos legais que vedem ilícitos na internet, tem-se notado que os termos de uso dos produtos e serviços passaram a ganhar importância também como parâmetros de conduta e instrumentos cada vez mais relevantes para a manutenção de um ambiente saudável no mundo virtual.
Se o produto consiste em um software, normalmente as regras de uso constarão no contrato de licença, nos termos do artigo 9º, caput, da Lei do Software. Mas os desenvolvedores de softwares também podem estabelecer termos de uso aos seus produtos e serviços, em complemento ao contrato de licença, o que é muito comum em programas de jogos online.
Já para os provedores de aplicações de internet, os termos de uso são ainda mais relevantes, porque tendem a ser o principal instrumento contratual que regula sua relação com os usuários. A título de exemplo, a depender do tipo de plataforma e serviço prestado, podem ser estabelecidas regras proibindo a publicação de conteúdos ofensivos.
Não é incomum, nesse sentido, que os provedores de aplicações de internet e desenvolvedores de softwares tenham de banir ou suspender usuários que infrinjam os termos de uso. Alguns usuários buscam a via judicial na tentativa de serem reintegrados nas respectivas plataformas. Todavia, nota-se um avanço jurisprudencial no sentido de atribuir aos termos de uso do serviço força contratual vinculante, fundamentando o banimento ou suspensão.
Aplicação de penalidades aos usuários: exercício regular de direito
A relação entre o usuário e o desenvolvedor de software ou provedor de aplicação de internet é uma relação de caráter privado, que se constitui a partir do momento em que o usuário assente com os termos de uso do produto ou serviço. No âmbito dessa relação, o provedor ou desenvolvedor do software têm liberdade para formular as políticas de conduta que entenderem convenientes e necessárias à prestação de seus serviços, desde que as disponibilizem de forma clara aos usuários.
É comum que os termos de uso de provedores de aplicações de internet prevejam a possibilidade de exclusão de contas ou suspensão dos serviços caso suas regras sejam descumpridas. Tais previsões, em primeiro lugar, são necessárias para tornar os termos de uso efetivos. Em segundo lugar, longe de ilícitas ou abusivas, elas encontram respaldo nos artigos 474 e 475 do Código Civil, que permitem a resolução do contrato pelo inadimplemento de umas das partes, mormente quando há nele cláusula resolutiva expressa, que opera de pleno direito, bastando a simples notificação à parte inadimplente.
Disso resulta que cláusulas que prevejam, nos termos de uso, a possibilidade de suspensão ou banimento de usuários são verdadeiras cláusulas resolutivas expressas, de modo que sua execução não é outra coisa senão mero exercício regular de direito, albergado pelo artigo 188, inciso I, do Código Civil.
A possibilidade de exclusão ou suspensão de contas de usuários, com base no descumprimento aos termos de uso, tem sido reconhecida no âmbito judicial. Em recente sentença proferida pelo juízo da 5ª Vara Cível de Guarulhos/SP, nos autos nº 1048215-36.2019.8.26.0224 (sentença publicada em 15.07.2020), em ação na qual o usuário questionava o banimento de sua conta em plataforma de jogos online, entendeu-se que a administradora da plataforma exerceu regularmente seu direito ao banir o usuário que, por utilizar software malicioso que lhe conferia vantagens em relação aos demais usuários, infringiu os termos de uso.
Igual posicionamento tem sido adotado em segunda instância pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Em caso no qual o usuário de jogo online utilizou software não autorizado e contas diversas para transferência de moedas virtuais, contrariando os termos de uso do jogo, considerou-se lícito o banimento de sua conta, porque feito em exercício regular de direito. Do mesmo modo, em caso envolvendo plataforma de vendas online, em que foi constatado o uso de uma mesma conta corrente comum a dois usuários distintos, declarou-se lícita a suspensão de uma das contas até que a irregularidade fosse sanada, porque a situação contrariava os termos de uso a que o usuário anuíra.
Termos de uso: segurança jurídica para empresas e usuários
Os termos de uso têm sido reconhecidos como relevantes instrumentos para balizar as condutas praticadas em ambiente virtual. Ao mesmo tempo em que eles esclarecem os serviços prestados, eles também estabelecem regras para seu bom uso, o que possibilita o estímulo às boas práticas na internet, princípio estabelecido pelo artigo 3º, inciso V, da Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet).
Ao mercado, o reconhecimento da força contratual aos termos de uso confere relevante segurança jurídica. Com a certeza de que usuários que violarem as regras estabelecidas para uso dos produtos e serviços podem ser sancionados, o próprio negócio permanece comercialmente viável, já que muitos usuários deixariam de utilizar as plataformas caso fossem palco de frequentes condutas não éticas ou prejudiciais, sem a possibilidade de coibição aos infratores.
Aos usuários, a força obrigatória dos termos de uso também é vantajosa, pois o banimento daqueles que utilizem vantagens indevidas resguarda a igualdade e a isonomia entre os usuários, o que é ainda mais relevante para determinados setores que têm cada vez mais se profissionalizado, como é o caso dos e-sports.
Portanto, são salutares o estímulo à obrigatoriedade dos termos de uso e o reconhecimento de que a aplicação de sanções aos usuários que os violem é lícita e regular, permitindo-se, assim, a construção de um ambiente saudável e estimulando-se a finalidade colaborativa do uso da internet.