O Brasil enfrentou uma de suas piores crises econômicas dos últimos anos, com reflexos negativos nos mais variados setores da economia. Como resultado, durante esse período, verificou-se um aumento expressivo do número de empresas que se valeram dos institutos da recuperação judicial e falência, o que trouxe à tona algumas discussões até então apreciadas de maneira não exaustiva pelo Poder Judiciário.
As proteções dos credores no cenário de insolvência
A Lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, conforme alterada (LFR), que regula a recuperação judicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, introduziu no regulamento jurídico brasileiro importantes mecanismos de proteção ao credor titular de garantias.
Nota-se que, mesmo considerando que a LFR tenha por objetivo proporcionar meios para a superação da crise econômico-financeira e, consequentemente, a preservação das atividades do devedor, o legislador buscou proporcionar um equilíbrio entre esses princípios e os direitos dos credores, ao estabelecer que as garantias pessoais prestadas por terceiros (e.g., avais e fiança) e as garantias fiduciárias (e.g., alienação ou cessão fiduciária) não estão sujeitas aos efeitos da recuperação judicial.
Em igual sentido, apesar de o crédito com garantia real (e.g., hipoteca e penhor) ser sujeito à recuperação judicial, a LFR instituiu que a alienação, a supressão ou a substituição do bem onerado deve ser previamente aprovada pelo credor titular desse direito, privilegiando-o nas negociações com o devedor em razão desse benefício legal.
A LFR prevê certos privilégios para os credores titulares de garantias reais na falência, dando-lhes prioridade em relação a determinados credores no recebimento dos produtos da massa falida, na medida em que os bens do devedor sejam arrecadados e alienados.
Ainda, a lei estabelece que as garantias fiduciárias no cenário de insolvência não estão sujeitas aos efeitos da falência, permitindo, dessa forma, que o produto da excussão dos bens objeto da garantia seja destinado ao pagamento do credor titular em um cenário falimentar.
Prioridade das garantias reais na falência
Em relação ao cenário de insolvência, é importante destacar que a regra da prioridade absoluta das garantias reais (absolute priority) existente em sistemas falimentares de diversos Países, não encontra guarida na legislação brasileira.
No Brasil, o credor titular de garantia real não tem prioridade absoluta no recebimento do valor decorrente da excussão do bem na falência, pelo contrário, o produto da alienação dos bens arrecadados da massa falida é utilizado para pagar os credores na ordem estabelecida pela lei (relative priority).
A prioridade do credor titular de tais garantias oferecida pela LFR consiste em colocá-lo em posição privilegiada nessa ordem de pagamento, ou seja, antes dos credores quirografários.
Flexibilização das proteções dos credores no cenário de insolvência
Apesar de a intenção do legislador de proteger os direitos dos titulares de garantias ter sido clara com a inserção de dispositivos na LFR nesse sentido, há diversas decisões judiciais recentes que têm flexibilizado ou afastado direitos fundamentais dos credores, inclusive, em relação às suas garantias, gerando relevantes impactos negativos e imprevisíveis a tais credores, em prol da preservação das atividades dos devedores.
Desde a entrada em vigor da LFR, a jurisprudência que vinha sendo construída no âmbito de processos de recuperação judicial respeitava fielmente os direitos dos credores com relação às suas garantias. Por exemplo, reputavam-se nulas cláusulas inseridas em planos de recuperação judicial que retiravam dos credores o direito de continuarem com a execução de seus créditos e garantias pessoais e/ou reais contra terceiros.
Da mesma forma, a liberação de bens objeto de garantias reais outorgadas pela própria devedora e terceiros precediam da autorização dos respectivos credores titulares.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), inclusive, editou a Súmula 581, que prevê que “a recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das ações e execuções ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória“.
A supressão das garantias
Recentemente, no entanto, os credores titulares de garantias se viram em uma situação completamente diferente e, até o momento, imprevisível: o STJ, por maioria de votos, reputou válido dispositivo de plano de recuperação judicial que previa a supressão de garantias reais e fidejussórias, não obstante os titulares de tais garantias terem ressalvado expressamente seus direitos, ou não terem comparecido, na assembleia geral de credores.
De acordo com o voto vencedor do Ministro Marco Aurélio Bellizze, a supressão de garantias aprovada pela maioria teria o condão de vincular todo o universo de credores, ainda que houvesse oposição específica pelos titulares da garantia.
Para o Ministro, a deliberação da assembleia geral de credores supriria o requisito “expressa autorização”, por ser soberana sobre a vontade unilateral do credor titular da garantia. Privilegiou-se, então, a vontade da maioria em detrimento do interesse de credores específicos.
A súmula 581 do STJ
A decisão vai de encontro com a Súmula 581 do STJ e da própria jurisprudência da Corte, que exigia a autorização expressa do titular para a liberação da garantia, desconsiderando as proteções aplicáveis às garantias em um cenário de insolvência do devedor, causando forte insegurança jurídica, principalmente, no mercado financeiro e de capitais.
Tal entendimento, ainda isolado, não tem sido aplicado em situações semelhantes pelos juízos de primeira instância e pelos Tribunais Estaduais, que permanecem reconhecendo os direitos e as prerrogativas dos titulares das garantias, em linha com o disposto na LFR, a Súmula 581 e a jurisprudência até então majoritária.
Propriedade fiduciária e conceito de bem de capital essencial
Outro ponto que merece destaque é a questão da propriedade fiduciária. Como visto, a LFR prevê que os credores que ocupam a posição de proprietários fiduciários não são sujeitos à recuperação judicial “não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial“.
Como o legislador não estabeleceu, na LFR, o que seriam “bens de capital” essenciais, ficou a cargo da jurisprudência defini-lo. A jurisprudência caminhava no sentido de definir tal conceito como sendo os bens empregados diretamente no processo produtivo da empresa, como, por exemplo, maquinários, terras, propriedade onde se localizava a sede da empresa, dentre outros, não obstante a existência de decisões em que, tendo como principal fundamento a aplicação do princípio da preservação da empresa, reconheciam a essencialidade de bens diversos sem qualquer avaliação específica sobre a sua natureza.
O STJ, em decisão recente também de lavra do Ministro Marco Aurélio Bellizze, reconheceu que recebíveis não se enquadram no conceito de “bem de capital”. Para tanto, instituiu critérios para a conceituação de “bem de capital”, sendo, para o ministro, aquele que, cumulativamente, encontra-se na posse da empresa, seja utilizado no processo de produção e seja corpóreo (móvel ou imóvel), não perecível ou consumível.
Adicionalmente, como requisito complementar, entendeu o ministro que, ao final do período de suspensão (stay period), é necessário que o devedor mantenha íntegra a possibilidade de o bem ser restituído ao credor fiduciário, ou seja, a sua utilização durante tal período não poderia causar o esvaziamento da garantia.
Esse julgamento é de extrema relevância, pois, apesar de não vinculante, estabelece critérios para a conceituação de “bem de capital”, conceito este fundamental para que os credores estruturem as suas garantias com clareza e maior previsibilidade do retorno de seu capital, por saberem se poderão ou não retirar os bens objeto de suas garantias fiduciárias do estabelecimento do devedor durante o período de suspensão (stay period).
Previsibilidade das decisões judiciais é fundamental para a eficácia das garantias
O respeito aos direitos dos credores é um tema que tem se tornado cada vez mais importante pela relevância ao mercado financeiro e de capitais, por serem atualmente os principais financiadores das atividades empresariais brasileiras.
A presença de garantias em operações de financiamento é comumente exigida pelos credores, como forma de mitigação de risco de crédito, dando ao devedor condições mais vantajosas na contratação, inclusive, em termos de taxa de juros.
Assim, é importante que o Poder Judiciário assegure aos titulares de garantias a contraprestação que se espera desse importante instituto de direito, fazendo com que as garantias contratadas entreguem aos credores a segurança que delas se espera, caso contrário, a falta de uniformidade e previsibilidade da jurisprudência poderia contribuir para um verdadeiro colapso do sistema de crédito brasileiro.
Para que tenhamos segurança jurídica nas relações entre credores e devedores, torna-se necessário que os direitos dos credores sejam preservados em cenários de insolvência, inclusive, quando aplicável, em detrimento ao princípio da preservação da empresa previsto na LFR.