O ano de 2020 começa com “novidades” em matéria penal e processual penal no país. Entra em vigor, já em janeiro, a lei 13.964/19, fruto da aprovação parcial do chamado “pacote anticrime”, que trouxe alterações substanciais em diversos diplomas legais. Entre elas, os acordos de não persecução penal (ANPP), os quais, sem que seja necessário qualquer exercício de futurologia, prometem exigir reflexões importantes.
O polêmico tema do “juiz de garantia” e as previsões sobre os acordos de colaboração têm provocado acalorados debates na comunidade jurídica, mas certamente outras alterações causadas pela nova legislação, como o ANPP, prometem reacender antigas discussões e demandarão dos operadores do direito um olhar profundo e sensível para a possível solução das interpretações jurídicas divergentes, que certamente surgirão.
Como bem apontado por René Ariel Dotti e Gustavo Britta Scandelari em artigo sobre o tema publicado no Boletim 317 do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, “A expressão ‘acordo de não persecução’ parece trazida da experiência norte-americana, por inspiração nos seus deferred prosecution agreement (ou adjudication, conforme o Estado) e non-prosecution agreement. Ambos, muito parecidos, implicam, lá, a assunção de responsabilidades e o cumprimento de condições pelo réu para que, em troca, receba sanções potencialmente mais leves do que as que poderia ter que cumprir caso fosse submetido a processo penal.”
A inclusão do mencionado dispositivo em nosso diploma processual representou uma tentativa de contemplar modalidade de solução consensual que já vinha sendo adotada no Brasil, ainda que timidamente e com certa dificuldade e questionamentos, especialmente porque tinha fundamento não em lei, mas meramente na Resolução 181/07 (com redação dada pela Resolução 183/17) do Conselho Nacional do Ministério Público.
Previa a resolução a possibilidade de oferecimento de acordo de não persecução penal para investigados por crimes cuja pena mínima cominada fosse inferior a quatro anos, desde que não praticados por meio de violência ou grave ameaça. A modalidade de acordo também previa a confissão do crime por parte do investigado, e pressupunha condições alternativas ou cumulativas como: (i) a reparação do dano, (ii) renúncia a bens (iii) a prestação de serviço à comunidade pelo período previsto na pena mínima, diminuída; (iv) o pagamento de prestação pecuniária (v) outra condição que pudesse ser proposta pelo Ministério Público, dentre outros requisitos.
A intenção era mais que louvável. Constavam dos ‘considerandos’ da resolução os seus fins precípuos, dos quais se destacavam o ” objetivo de tornar as investigações mais céleres, eficientes, desburocratizadas”, a “necessidade de modernização das investigações com o escopo de agilização, efetividade e proteção dos direitos fundamentais dos investigados, das vítimas e das prerrogativas dos advogados” e principalmente a necessidade de desafogar “a carga desumana de processos que se acumulam nas varas criminais do País e que tanto desperdício de recursos, prejuízo e atraso causam no oferecimento de Justiça às pessoas, de alguma forma, envolvidas em fatos criminais”.
Apesar da vertente moderna, condizente com as modalidades afeitas à Justiça Criminal consensual já observadas em outras jurisdições, o fato é que a previsão deste tipo de acordo em uma resolução ministerial mereceu duras críticas por parte dos operadores, que apontavam uma série de violações constitucionais especialmente relacionadas ao fato de que estava nas mãos do próprio titular da ação penal a possibilidade de fixar as penas previstas no acordo, sem a necessidade de representação processual por defesa técnica, e sem a exigência de um controle externo mais efetivo por parte do Judiciário.
As discussões foram tantas que culminaram com a propositura de ações diretas de inconstitucionalidade pela Associação dos Magistrados Brasileiros, pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e pela Associação dos Juízes Federais, a AJUFE. E, nessa toada, alguns acordos foram firmados, outros foram recusados pelo Judiciário.
Com a promulgação da chamada “Lei Anticrime”, parte das discussões quanto à constitucionalidade do ANPP foram sanadas. Agora, temos em nosso ordenamento jurídico processual a previsão legal expressa do ANPP, com redação bastante similar à contida na polêmica resolução, mas agora elaborada pelo Poder Legislativo e, portanto, cumpridora do princípio da legalidade; exige-se que sua homologação se dê em audiência judicial, a ser presidida pelo juiz de garantias; e tem como indispensável pressuposto a presença e atuação da defesa técnica.
Apesar de sanadas as questões constitucionais – ao menos no que se refere aos acordos que poderão ser firmados a partir da vigência da lei, é evidente que os operadores do direito penal devem se deparar com uma série de outros senões e porquês.
A nova lei deu ao juiz o poder de devolver os autos ao Ministério Público caso considere as condições propostas inadequadas, insuficientes ou abusivas. O juiz também poderá se recusar a homologar determinado acordo, devolvendo os autos à acusação para análise de eventual complementação das investigações ou oferecimento de denúncia. A lei também prevê que a parte poderá requerer a remessa dos autos ao Procurador-Geral para os casos de recusa em propor o acordo por parte do representante do Ministério Público. Este é um dos pontos que inspira maior preocupação.
A exemplo do que ocorreu quando da edição da lei do Juizados Especiais Criminais (Lei 9099/95), não será estranho depararmo-nos com discussões sobre se há discricionariedade do Ministério Público para eventual recusa no oferecimento da proposta, quando em tese cabível o ANPP.
O termo “poderá propor”, contido no novo art. 28-A, pressupõe um “poder-dever” do órgão acusatório. É um “poder” apenas porque está, sim, condicionado, mas ao preenchimento objetivo, por parte do investigado, dos requisitos legais previstos. Não é um “poder” porque condicionado a um “querer” do proponente, sobretudo porque não há espaço para voluntarismo pessoal no campo da tutela de direitos de liberdade. Vale dizer, uma vez preenchidos os requisitos, o investigado adquirirá um direito público subjetivo à possibilidade do acordo.
Tal direito não pode ser simplesmente recusado por achismos ou em função da opinião pública ou pessoal do membro do Ministério Público, por conveniência ou mesmo por posição institucional do titular da ação penal, enfim, pela sua (má ou boa) vontade diante do caso sob investigação.
Da mesma forma, não deve o ANPP ser limitado pela indicação, em tese, de imputações excessivas e desproporcionais ou pela imposição sempre cumulativa de condições de satisfação prática impossíveis, ou que coloquem o acusado na ingrata posição de ver-se diante da necessidade de ter de confessar circunstanciadamente fatos que não praticou, em troca da segurança da aplicação uma pena certa e diferente da prisão incerta, para a manutenção da incolumidade de seus registros de antecedentes criminais.
Cabe, aqui, lembrar que, malgrado os acordos penais sejam uma realidade crescente na cena internacional – especialmente por inspiração da cultura jurídica norte-americana, conforme acima lembrado –, tem eles sido objeto de relevantes alertas e críticas da doutrina especializada, em todo o mundo, com vistas a que se previnam riscos de punições a inocentes que temam os riscos inerentes à sujeição a processo criminal.
Além disso, não nos parece salutar que a decisão quanto à possibilidade ou não do cabimento de um ANPP continue sempre nas mãos do Ministério Público, ante a previsão legal do pedido de remessa dos autos ao órgão ministerial superior, na forma do art. 28 do CPP.
Independentemente dos resultados desta revisão pela Procuradoria-Geral, fato é que não se poderá excluir do Judiciário a possibilidade de reconhecer o direito público subjetivo de determinado acusado, de forma que podemos também prever proposituras de ações de habeas corpus sobre o tema, em razão do interesse público que carrega, necessariamente subjacente à tutela dos direitos individuais de liberdade.
Outro tema que também promete provocação ao Judiciário se refere à propositura açodada de acordos. Também não será estranho vislumbrar situações em que o acordo seja proposto sem que a investigação seja bem concluída, e sem que um juízo adequado de tipicidade penal seja feito.
Noutras palavras, a ideia precípua de aliviar o sistema tão abarrotado não pode suplantar a sempre necessária avaliação do Parquet quanto à possibilidade e ao dever de arquivamento do inquérito, que muitas vezes é a correta providência a ser tomada. Nenhuma medida de praticidade, economia e política criminal pode justificar o oferecimento de acordos “ansiosos”, em qualquer caso, atropelando-se a a análise correta e profunda dos fatos sob investigação e os requisitos mínimos de autoria e de materialidade delitivas.
Os tribunais também deverão se deparar com a necessidade de avaliar a situação dos acordos firmados antes da lei, ou seja, sob a égide da resolução tida por muitos, e com razão, por inconstitucional. Apesar de a norma processual penal não poder retroagir a casos passados, fato é que muitos acordos já firmados respeitam o que hoje a lei impõe como requisito e atendem ao espírito desse viés moderno que o direito processual penal visa a atender, sendo contraproducente e injusto simplesmente invalidá-los, até porque o direito penal impede alterações desfavoráveis no tratamento jurídico de fatos e pessoas com efeitos retroativos.
Certamente esses não serão os únicos pontos controvertidos. Os anos vindouros dirão se os ANPPs vieram para desafogar o Judiciário, ou para afogá-lo ainda mais diante da possível avalanche de habeas corpus e outras medidas impugnativas para sanar essas e outras questões que lhes emprestam, no momento, temerária e indesejável insegurança jurídica.
Esperamos é claro, que os ideais modernos que permearam este novo viés consensual sirvam de cenário a uma atuação conscienciosa do Ministério Público e da magistratura em âmbitos federal e estaduais, para que viabilizem a realização de acordos justos e que cumpram todos os seus fins.
Os defensores, por sua vez, deverão estar plenamente alertas e preparados para se insurgirem contra acordos propostos indevidamente – quer porque propostos em casos nítidos de arquivamento, quer porque eventualmente atrelados a condições de impossível cumprimento – ou ainda para bradarem pela necessidade de propositura de acordo, quando cabíveis e não propostos.