A continuidade de modelos tradicionais de assistência à saúde parece cada vez mais improvável com a disrupção de novas tecnologias nesta indústria. A disrupção se observa primeiramente na tendência recente de colocar o paciente no centro da sua própria jornada, acabando, inclusive, por estabelecer novas formas de pagamento baseadas no valor agregado à saúde do indivíduo. Conceitos de consentimento, autonomia e engajamento se impõem gradativamente como premissas essenciais ao sucesso de soluções inovadoras, bem como o adequado desenvolvimento desse complexo sistema de produtos e serviços.
Além disso, assim como no âmbito do varejo, turismo, transporte, operações bancárias, entre outros exemplos, felizmente estamos embarcando em uma “nova era” do setor saúde, que passa a integrar tecnologias diretamente com ações preventivas, de tratamento, monitoramento e reabilitação de pacientes.
Tal mudança de comportamento também se deve, em grande medida, ao amadurecimento do que se pode chamar de saúde digital, que pode ser traduzida como um desdobramento da atenção à saúde tradicional, que passa a contar com ferramentas tecnológicas em benefício da saúde e bem-estar dos indivíduos – com especial destaque à utilização de processos computacionais no âmbito de previsões, recomendações e tomada de decisões, ou seja, o uso de Inteligência Artificial (IA).
Através da IA e outras ferramentas tecnológicas como Blockchain, Machine Learning, Big Data & Analytics, a saúde digital permite ao paciente uma interação contínua e próxima com seus profissionais de saúde, estabelecendo uma troca de informações em tempo real a respeito de sintomas, comportamentos, rotinas e outras respostas clínicas.
Além disso, permite o engajamento do indivíduo, que passa a ter acesso na palma de sua mão aos seus próprios registros e dados de saúde, estimulando o autocuidado. Também pode auxiliar na superação de barreiras financeiras e geográficas, criando uma jornada mais eficiente, transparente e acessível ao paciente.
Outra aplicação se dá no âmbito das fases de Pesquisa & Desenvolvimento de novas moléculas, tratamentos inovadores ou de descobertas sobre a ciência do próprio corpo humano, que através de algoritmos e modelos preditivos podem acelerar o que tradicionalmente é uma etapa onerosa e lenta, porém absolutamente necessária, do processo natural de evolução científica do setor.
Sob o aspecto de política pública, a aplicação de tecnologias abre uma porta importante para democratização do acesso ao conhecimento médico e refinamento da colaboração indissociável entre os diversos níveis de atenção à saúde, podendo trazer uma melhora significativa no mapeamento de demandas da sociedade, por exemplo, identificando tendências epidemiológicas e indicadores pertinentes de atenção à saúde (como mortalidade e morbidade). Por consequência, podem otimizar a alocação/gestão adequada de recursos públicos com base em dados e métodos empíricos.
Saúde Digital em tempos de Covid-19
Em meio a tantas incertezas sobre o que o futuro nos reserva, é certo que a saúde digital está desempenhando um papel estratégico e fundamental contra a Covid-19, no Brasil e no mundo.
Localmente, esta constatação pode ser traduzida em três iniciativas recentes:
- Ampliação do programa de Telessaúde do Ministério da Saúde para desenvolvimento de ações teleorientação, teletriagem e telemedicina no Sistema Único de Saúde (SUS);
- Criação de um banco consolidado de imagens para auxiliar os profissionais de saúde no diagnóstico de Covid-19, que através da plataforma Maida.Health, realiza uma triagem de exames de imagens de Raio-x e tomografia computadorizada de tórax para casos suspeitos de SARS-COV-2; e
- Criação do aplicativo Coronavírus – SUS, pelo Ministério da Saúde, que permite o envio de mensagens e alertas epidemiológicos para usuários em geral ou segmentos públicos específicos, bem como a avaliação remota de sintomas para efetivo direcionamento do paciente a respeito do melhor local e/ou formato de atendimento. Outra iniciativa, relacionada à informatização de 16 mil postos de saúde que ainda não possuem acesso regular à internet, também pode refletir positivamente no processo de digitalização dos serviços públicos de saúde.
Em complemento, a relevância de medidas não farmacológicas como distanciamento social, isolamento e quarentena serviu para expor uma necessidade já conhecida e urgente de melhoria da assistência remota à saúde. Surpreendentemente, até o início deste mês, a telemedicina entre médico e paciente era proibida, exceto em casos específicos de urgência ou emergência. A tentativa de atualização da respectiva regulação setorial no ano passado, ensaiada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), terminou revogada antes mesmo de entrar em vigor.
Em termos regulatórios, a telemedicina é definida de forma ampla e abrangente como sendo o exercício de medicina através da utilização de metodologias interativas de comunicação audiovisual e de dados, com o objetivo de assistência, educação e pesquisa em Saúde – nos termos da Resolução 1.643/2002 emitida pelo CFM.
Referida norma aborda o assunto de maneira superficial, apenas possibilitando sua utilização para suporte diagnóstico e terapêutico nos casos de emergência ou quando solicitado por médico responsável.
Nesta mesma linha, a Resolução CFM nº 2.217/2018 (Código de Ética Médica) dispõe ser vedado ao médico prescrever tratamentos sem exame direto do paciente em casos que não sejam de urgência e emergência, ou com impossibilidade comprovada de realizá-lo.
A mesma regulação estabelece que eventual não conformidade com a regulação ético-profissional no âmbito do CFM e dos Conselhos Regionais de Medicina (CRM) sujeita os profissionais médicos às penalidades de: advertência confidencial, censura confidencial, censura pública, suspensão e cancelamento do registro – mediante a realização de uma sindicância e um processo ético profissional, conduzidos pelo CRM de origem do médico.
Importante ressaltar, contudo, que eventual condenação em âmbito administrativo não excluiria a possibilidade de discussão da penalidade aplicável pelo conselho profissional em âmbito judicial, especialmente no que se referem aos aspectos formais do processo administrativo.
Atualizações regulatórias decorrentes do cenário epidemiológico do país
Ocorre que, de forma inesperada, a partir de março de 2020 o Brasil se viu frente a uma pandemia, cujas principais ações de enfrentamento implicam em alguma restrição de liberdades individuais, essencialmente por conta da implementação de medidas de redução da mobilidade dos cidadãos (distanciamento social, isolamento e quarentena).
Deste modo, em 19 de março de 2020, o CFM publicou o Ofício CFM nº 1.756/2020 disciplinando, também de forma superficial, o exercício de modo virtual de atividades como teleorientação (orientação a pacientes), telemonitoramento (monitoramento da saúde de pacientes) e teleinterconsulta (auxílio diagnóstico e terapêutico) entre médicos e pacientes, enquanto durasse a crise decorrente da Covid-19.
Logo em seguida, em 20 de março de 2020, o Ministério da Saúde publicou a Portaria MS 467/2020, que regula a telemedicina em caráter excepcional e temporário para enfrentamento de emergência de saúde pública decorrente da COVID-19, em âmbito público e privado. Referida norma permite a realização à distância de atendimento pré-clínico, suporte assistencial, consultas, e monitoramento e diagnóstico, inclusive entre médicos e pacientes.
Em complemento, a norma autorizou expressamente a emissão de atestados e receitas médicas por meio eletrônico. Esta última se sujeita a determinados requisitos formais – utilização de certificados e chaves emitidos pela Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil); o uso de dados associados à assinatura do médico de tal modo que qualquer modificação posterior possa ser detectável; ou inclusão de identificação do médico, associação ou anexo de dados em formato eletrônico e admissão como válida pela pessoa a quem for oposto o documento. Em complemento, está sujeita à regulações específicas sobre prescrição de medicamentos, emitidas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
A repercussão chegou ao Poder Legislativo, que em 13 dias aprovou uma lei a respeito do mesmo tema. Em 15 de abril de 2020, foi sancionada a Lei n.º 13.989/2020 que dispõe sobre o uso da telemedicina enquanto durar a crise ocasionada pela Covid-19, com dois vetos em relação ao texto que havia sido aprovado pelo Congresso Nacional, quais sejam:
- artigo disciplinando que seria competência do CFM a regulamentação da telemedicina após o período de vigência da Lei n.º 13.989/2020 – sob o argumento de que a permissão ou proibição de atividades médicas por meio de telemedicina em um cenário pós pandemia deveria ser feita através de lei. Isso pois, segundo a Constituição Federal vigente, ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei, sendo livre o exercício de qualquer trabalho ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer. Ou seja, o avanço da telemedicina no Brasil parece ser ainda mais encorajado daqui em diante, especialmente não havendo uma lei proibindo referida prática.
- artigo estabelecendo que durante o período de vigência seriam válidas receitas médicas digitais, desde que possuíssem assinatura eletrônica ou digitalizada do profissional de saúde – a justificativa foi que a ausência de assinatura eletrônica, feita através de certificados e chaves emitidos pela Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (“ICP-Brasil”), representaria um risco sanitário à população, de forma que se verificaria um descompasso com as normas técnicas de segurança e controle da ANVISA.
Além disso, os Conselhos Federais de Psicologia, Enfermagem e Nutrição também se posicionaram a respeito da possibilidade de oferecimento de cuidados em saúde à distância.
Preocupações com Dados sensíveis
Ao falar de telemedicina deve-se atentar também para os aspectos relacionados a proteção de dados dos pacientes, que certamente serão compartilhados, acessados, armazenados e processados no âmbito das aplicações de telemedicina.
Nos termos Código de Ética Médica vigente, é vedado ao médico: Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado; Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo; Permitir o manuseio e o conhecimento dos prontuários por pessoas não obrigadas ao sigilo profissional quando sob sua responsabilidade; e Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente.
Ainda, de acordo com a Lei n.º 13.709/2018, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), dados genéticos ou biométricos, bem como os relacionados à saúde, vida sexual de um indivíduo são considerados dados sensíveis. Isto significa que demandam maior atenção em seu tratamento, especialmente no que se refere às bases legais de tratamento e compartilhamento.
Há que se ter cautela para que não sejam acessadas por um terceiro, especialmente quando forem para propósitos diferentes da finalidade para a qual os dados foram coletados. Assim, deve-se sempre atentar para o cumprimento dos princípios de finalidade, necessidade e adequação.
Por outro lado, é importante pontuar que dados classificados como anonimizados não são considerados dados pessoais e, portanto, estão fora do âmbito de aplicação da lei. Segundo o art. 5º, inciso III, da LGPD, dados anonimizados são aqueles “relativos a titular de dados que não possa ser identificado, considerando a utilização de meios técnicos razoáveis e disponíveis na ocasião de seu tratamento”.
Note-se, contudo, que a não aplicação da LGPD a dados anonimizados não é absoluta: ainda que os dados sejam considerados anônimos do ponto de vista técnico, a LGPD será aplicável caso o processo de anonimização ao qual foram submetidos for revertido, utilizando exclusivamente meios próprios, ou quando, com esforços razoáveis, puder ser revertido. Ou seja, a mera possibilidade de reversão pode ser suficiente para que a legislação seja aplicável às atividades de tratamento.
Importante notar que apesar da atual incerteza sobre a data em que passará a vigorar, sem dúvidas a LGPD deve ser interpretada e implementada como uma boa prática de mercado por todos os players do setor.
No momento, não há uma regulação de saúde que estabeleça regras específicas sobre a necessidade de consentimento, ou não, para manipulação de dados sensíveis de saúde em caráter anonimizado; ou fatores de identificação específicos que, se retirados, garantem a anonimização do dado sensível de saúde.
A título de comparação, o Health Insurance Portability and Accountability Act (HIPAA), vigente nos EUA, estabelece que a extração dos seguintes itens tornam um dado pessoal de saúde “desidentificável”: fotografias de rosto inteiro e quaisquer imagens comparáveis; informações biométricas incluindo impressões digitais e de voz; identificadores de dispositivo; endereço; número de habilitação; elementos de datas (exceto ano) diretamente relacionadas ao indivíduo; contas ou registros; nomes; subdivisões geográficas menores que um Estado; endereços e contatos de telefone/fax; números de previdência social; números de prontuários médicos; números de certificados e licenças; números de IP; números de beneficiários do plano de saúde; identificadores de veículos e números de série, incluindo números de placas; identificadores de dispositivo e números de série; URLs; e qualquer outro número, característica ou código de identificação exclusivo – exceto conforme permitido para fins de reidentificação, desde que determinadas condições sejam atendidas.
Cenário pós-Covid-19
A ampliação da telemedicina no país foi regulamentada, no momento, em razão da emergência de saúde pública decorrente da Covid-19. No entanto, há que se reconhecer que a situação atual tem sido crucial para que se reconheça o real potencial de se ter a saúde aliada à tecnologia.
A propósito, ficou estabelecido que a vigência da Lei n.º 13.989/2020 está permitida enquanto durar a crise causada pela Covid-19, ou seja, não está vinculada ao fim das situações de Emergência De Saúde Pública Da Importância Nacional (ESPIN) – como faz a Portaria – ou ainda, calamidade pública. Há, portanto, uma interpretação relativamente abrangente a respeito do seu marco para término de vigência.
Retroceder na questão mesmo após o fim da situação atual causada pelo Coronavírus não parece mais uma alternativa.
Assim, a telemedicina parece se encaminhar para um cenário de expansão do atendimento médico não apenas para aqueles que já teriam este atendimento de forma presencial, mas também para aqueles que estão em áreas remotas ou sem opção de consulta por médico especialista. Trata-se de uma excelente oportunidade para gerar assistência médica a um número maior de cidadãos brasileiros, favorecendo assim as duas pontas da cadeia: médicos e pacientes.