Joice Bacelo
Uma corretora de câmbio que havia sido autuada pela Receita Federal como responsável solidária por uma dívida
tributária superior a R$ 40 milhões de um de seus clientes conseguiu se livrar da cobrança já na primeira instância
administrativa. A decisão é uma das primeiras que envolve investigados na Lava-Jato e volumosas remessas de
dinheiro ao exterior.
Por esse motivo já é considerada importante por especialistas na área. Mas há ainda um outro ponto:
diferentemente do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) - a segunda instância, em que metade dos
conselheiros representa a Fazenda e a outra metade os contribuintes -, na primeira os julgadores são todos
representantes unicamente do Fisco.
"Essa decisão pode sinalizar que há um novo entendimento dentro da própria instituição", diz um advogado.
"Porque é a própria Receita Federal limitando a atuação dos agentes fiscais nessa questão de atribuir
responsabilidade tributária a terceiros", acrescenta.
O Fisco tem adotado a prática de incluir bancos e corretoras nos autos de infração que envolvem os seus clientes. E
essa situação tem sido frequentemente registrada nos casos relacionados à Lava-Jato.
Os investigados na operação são autuados - e as instituições incluídas como responsáveis solidárias - por tributos
que teriam deixado de ser recolhidos nas transações financeiras (Imposto de Renda e CSLL), além de juros e multa
qualificada de 150% sobre os valores considerados devidos.
Até o começo do ano, segundo dados da própria Receita Federal, foram chamadas a prestar contas 17 instituições
que, de alguma forma, atuaram nessas transações. Um dos motivos apontados pelo Fisco é que teriam facilitado ou
promovido o envio irregular de dinheiro ao exterior.
A corretora que teve recurso analisado agora pela primeira instância administrativa respondia por dívidas
tributárias de um de seus clientes que realizou mais de 200 remessas de dinheiro para fora do país ao longo dos
anos de 2013 e 2014. Consta no processo que esses valores serviram ao pagamento de importações fictícias e teriam
como finalidade única a evasão de divisas.
Ainda segundo o processo, a corretora foi incluída como responsável solidária "por ter deixado de tomar
providências para se certificar da existência e da idoneidade" do cliente quando aceitou intermediar as transações.
Tal cliente, nesse caso, era a Da Vinci Confecções, empresa que, segundo as investigações da Lava-Jato, atuava
somente de fachada e era controlada pela doleira Nelma Kodama. Ela foi presa em 2014 e condenada a 18 anos por
lavagem de dinheiro, organização criminosa, evasão de divisas e corrupção. Atualmente cumpre pena em regime
domiciliar.
A 3ª Turma da Delegacia da Receita Federal de Julgamento no Recife, que analisou o caso na primeira instância,
manteve a cobrança dos mais de R$ 40 milhões em impostos à empresa e também a pessoas ligadas diretamente a
ela.
Decidiu, no entanto, excluir a corretora por entender que não ficou comprovado haver um interesse comum da
instituição com relação às transações que foram feitas pelo cliente - como prevê o artigo 124 do Código Tributário
Nacional (CTN) para a inclusão do responsável solidário.
"Não ficou comprovada a existência de grupo econômico de fato, confusão patrimonial, vinculação gerencial ou
coincidência de sócios e administradores que pudesse ensejar a responsabilização tributária", afirma em seu voto a
relatora do caso, Ana Lúcia Lopes Luna. Ela foi seguida pelos outros dois auditores que participaram do
julgamento.
Representante da corretora no caso, o advogado Pedro Moreira, do CM Advogados, entende que o Fisco não
poderia "de forma alguma" atribuir responsabilidade a terceiros sem provar cabalmente que houve participação
direta no fato gerador do imposto. E, nesse caso, afirma, a corretora atuou apenas como a intermediadora da
operação de câmbio, em uma prática comum.
"Não pode o Fisco, de forma completamente subjetiva e sem provar má-fé, atribuir essa responsabilidade, seja à
corretora ou a qualquer outra instituição financeira que, de alguma forma, tenha participado da operação", defende
o advogado.
"Há limites para a responsabilização de terceiros. Está no CTN. E isso é fundamental para que se tenha
segurança jurídica".
Há ao menos dois julgamentos recentes do Carf nessa mesma linha - nenhum deles, no entanto, envolvendo
operações caracterizadas como fraudulentas pela Lava-Jato.
Especialista na área, o advogado Roberto Quiroga, do escritório Mattos Filho, lembra que esse movimento da
Receita, de autuar terceiros, aumentou muito nos últimos três anos e que, agora, se vê "de uma forma muito inicial
na jurisprudência" a separação dos casos em que ficou comprovado o interesse desse terceiro na operação daqueles
em que isso não ocorreu - como o de simplesmente ter intermediado ou assessorado.
"Eu diria que é ainda muito inicial, mas há uma tendência em separar o joio do trigo. Seja nas delegacias da Receita
ou mesmo no Carf", destaca Quiroga. Ele mesmo atuou como o representante de uma instituição que conseguiu ser
excluída da cobrança em um caso julgado pelo Carf.
Em decisão proferida em abril, a 1ª Turma da 2ª Câmara da 1ª Seção livrou o Citibank DTVM de uma autuação que
o apontava como devedor solidário por ser gestor de um fundo de investimentos utilizado em uma operação de
compra e venda de empresas.
O Fisco considerava, nesse caso, que a operação havia sido realizada para afastar, artificialmente, a incidência de
tributos sobre ganho de capital. No Carf, a autuação às empresas foi mantida, mas a instituição retirada do
processo.
Há entendimento semelhante também na 2ª Turma da 4ª Câmara da 2ª Seção. Nesse caso, julgado em maio, os
conselheiros livraram de uma autuação fiscal uma consultoria e uma empresa de investimentos que assessoraram
um cliente em um planejamento tributário.
Procurada pelo Valor, a Receita Federal informou que não se manifestaria sobre o assunto. A Procuradoria-Geral
da Fazenda Nacional (PGFN) também foi procurada, mas não retornou. E não foi localizado representante da Da
Vinci Confecções para comentar a decisão.